O Crusp entre duas utopias

Texto sobre a mudança da gestão neoliberal do CRUSP, moradia estudantil da USP pelas instâncias administrativas (leia-se: COSEAS) da Universidade de São Paulo.

CMI — Centro de Mídia Independente, 14 set 2006
D.A.

A moradia estudantil da Universidade de São Paulo, campus da Capital, vive hoje uma mudança interna. Aparentemente ela é apenas organizacional, mas, em verdade, se revela no modo de constituição dos sujeitos que convivem em seu interior.

Concebido para um outro fim, o recebimento dos atletas para uma edição dos Jogos Panamericanos, sua estrutura foi um dos primeiros elefantes brancos da engenharia civil brasileira. Foi premiado e seria destinado a demandas tangenciais como depósito, hospedagem para visitas e às vezes salas de aula.

Num momento de grande inspiração e penúria, diversos estudantes se reuniram para dar vida ao anterior daqueles prédios e poder prosseguir os seus estudos em São Paulo. Ocuparam (nunca digo invadiram) o CRUSP e, a partir daquele momento, se estabeleceram os fortes vínculos entre os estudantes no sentido da apropriação das condições que permitiriam a sua vida na Universidade.

A ação, a luta contra um momento triste da história brasileira teve uma vitória fundamental a ponto de poder garantir-se e resistir muito tempo às forças repressivas e draconianas da ditadura militar. A única coisa que a administração da universidade pôde fazer foi dividir os Blocos em Homens e Mulheres assumindo que eles lá deveriam habitar até se formar.

Houve um sopro libertário e único, capaz de reverter até a idéia de controle que permeava a construção do CRUSP e sua reestruturação interna, onde, reza a lenda, cada apartamento que hoje tem três quartos, foi feito deste modo para evitar a formação de casais homossexuais. Falta de imaginação administrativa que não abateu os moradores do CRUSP. Era o momento da utopia libertária pelo fim da repressão e da desigualdade.

O CRUSP abrigou perseguidos e resistiu ao ataque do comando de caça aos comunistas e da intimidação do passeio dos tanques que atolavam ao seu redor, abrigando encontros estudantis, porém, acabou sendo desocupado, assim como posteriormente abandonado pelos demais estudantes, mesmo do movimento estudantil, acompanhando a curva econômica que dividia os estudantes em castas economicamente definidas no Campus da capital.

Num novo esforço, recriou-se a habitação estudantil cruspiana em meados dos anos oitenta, recolocando a pauta da necessidade da redistribuição de renda pelo fundo público, a partir da universidade, ao menos reduzindo a "carestia", o custo de vida para o estudante em São Paulo (termo da época que unia as bandeiras de diversos movimentos sociais, que tinha o sentido de distribuição de renda onde o Estado participava, como acumulador de mais-valia da população).

Viu-se a abertura política simultaneamente às instâncias de controle que foram gradativamente se apoderando do cotidiano do CRUSP de modo perverso e mudando o seu vocabulário, onde se distribuía renda, hoje se compensa socialmente (o favor que a universidade faz para o aluno, como uma muleta ajuda quem dela necessita, por ser uma instituição boa e democrática, desde que obedecidas às regras) e para deixar a vida do estudante confortável, a Universidade foi controlando e "facilitando" a vida estudantil aliviando-o das dificuldades e das tensões que são resultado da vida comunitária em meio ao conflito de classe entre os estudantes assistidos (ou administrados) e os demais e entre estes e professores, apagando nesse processo a memória do estudante que foi se acomodando e naturalizando o seu entorno.

Tudo à sua volta parecia natural como se a Universidade tivesse construído esta estrutura para o estudante com recursos que, infelizmente, foram se esgotando.

Outra idéia nova: a disputa foi se apoderando do cotidiano do estudante agora assistido: a competição inicial pelas vagas escassas, além da competição com os outros estudantes.

A competição sinistra onde o interessado deve tentar se mostrar o mais pobre, o mais frágil e açucarar a instância da administração universitária mais próxima: A assistente social, profissional que retrata ela mesma o fato de que as diferenças de classes manter-se-ão como estão, sendo apenas compensadas. Braço amigo e mão forte que esmaga utopias libertárias e mesmo social-democratas de bem-estar social. .

Frente a este fato, os estudantes se isolaram e retrocederam ante instâncias que administravam suas vidas, resignando-se a viver sob a mira cada vez mais atenta, capaz de tirar as condições que permitiriam seu acesso, ao mesmo tempo em que as demais classes também empobreciam e necessitavam deste mesmo auxílio.

Hoje o COSEAS tenta entre os estudantes do CRUSP se estabelecer como uma instância de controle, tal como o convento, a prisão e o manicômio em outras épocas, mantendo um clima de tensão que gradativamente se torna um hospício fechado e torturante a diversos estudantes que lotam diversas instâncias de auxílio psicológico gratuito desta universidade, sem possibilidade de solução e, na maioria dos casos, intermitente (crises depressivas no CRUSP se medem para alguns estudantes como as estações do ano). A vida destes administrados é uma crise cuja tensão emerge em surtos intermitentes.

Uma nova utopia, como a de Huxley e Orwell se realiza no lugar daquela outra descrita, beirando o absurdo: hoje o direito de se alimentar se restringe a quem consegue cumprir um mínimo de créditos, e, no mundo dos que vieram da escola pública para esta universidade "pública" demanda um período de adaptação e compensação de deficiências acadêmicas que podem demorar a ser sanadas (especialmente no caso de cursos que demandam boa redação, línguas estrangeiras ou muita habilidade matemática e rápido pensamento abstrato ), mesmo que o vestibular permitisse ao estudante pobre adentrar o portão da Cidade Universitária, este deve continuar a luta contra os outros e contra as novas adversidades.

Como este tempo de adaptação não é respeitado, os estudantes que não conseguem cumprir os créditos não podem comer. Talvez orientado pela seleção natural, a COSEAS parece desejar que apenas os mais adaptados entre os mais necessitados sobreviva melhorando o ecossistema do CRUSP.

Listo agora apenas algumas das absurdidades aplicadas hoje pelo COSEAS aos estudantes:

Pessoas são expulsas na calada da noite, nos fins de semana e feriados. As pessoas são incentivadas a sair de seus apartamentos (muitas vezes ludibriadas pela guarda universitária) e então são jogadas para fora do CRUSP tendo suas coisas recolhidas e embaladas com um saco preto, após isso, estas pessoas estão impossibilitadas de voltar ao CRUSP.

Há algumas vagas ociosas nos alojamentos, apesar de, a cada novo processo seletivo, fazerem o estudante ele mesmo desalojar o ocupante da vaga em que ele deve ocupar gerando discórdia entre estudantes e não abrindo a possibilidade do alojamento.

Há problemas no processo seletivo e evita-se divulgar informações (por exemplo, irmãos tiveram pontuações e estatus diferentes) ou a ATA das reuniões da "Comissão mista" que julga os casos dos estudantes, que conforme dito, nunca foi feita.

Quer-se alterar o estatuto do modo de administração do CRUSP, legalizando processos hoje obscuros que devem adentrar num regime de leis provisórias a casos que nunca cabem nas normas se tornando todos exceções. A capacidade de julgar caberia então a alguma autoridade pessoal, em suma, um dos muitos casos de leis de exceção que se tornam regra. Regra de todo o neoliberalismo ora em curso.

Não há dinheiro do orçamento da USP destinada para a Assistência Estudantil, apenas utiliza-se uma verba auxiliar e residual cujo fim está decretado, apesar de estar-se construindo, neste momento, um Hotel para visitantes ilustres com milhões de reais.

Hostilizam-se os moradores do CRUSP e do alojamento fazendo-os brigarem uns contra os outros.

Registram-se os telefonemas e todas as visitas recebidas pelos moradores do CRUSP para controle disciplinar, escolhendo o que é ou não ideal em termos de postura do estudante em relação a sua vida.

Há uma lista de pessoas que não podem ser alojadas no CRUSP sem se formalizar qualquer acusação e impossibilitando assim a sua defesa.

É constante o policiamento ostensivo e ameaçador contra os moradores, apesar de ineficaz e desinteressado em sua segurança e auxílio. (Exemplo do caso dos estupros dentro da USP e o modo como foram abordadas as vítimas).

As normas são diferentes para cada caso, pois tudo parece uma exceção a regra, escamoteando o nepotismo.

A área da COSEAS será cedida ao banco Santander pois ele deverá deixar o lugar onde se encontra

Reduz-se o prazo em que o estudante do CRUSP pode terminar a sua graduação em relação a qualquer estudante não dependente da assistência estudantil obrigando-o a, em muitos casos, desistir de sua graduação, não tendo o estudante onde morar quando não completa seus créditos a tempo.

Quando do não cumprimento dos créditos em detrimento de problemas pessoais como tristeza ou familiares, obriga-se o estudante a apresentar comprovação de tratamento psiquiátrico.

Contra tudo isto, pede-se o apoio dos demais estudantes não bolsistas e demais companheiros, na luta pela moradia estudantil e contra o hospício-prisão cruspiano que agora se instala.

mailto:diaphonia@riseup.net

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