Noite de violência: A invasão da PUC-SP em 1977

Fundação Perseu Abramo, 2006

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Há 29 anos, na noite de 22 de setembro de 1977, o campus da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo era brutalmente invadido pela Polícia Militar paulista. A razão imediata da invasão foi o fato de haver se realizado ali, na tarde daquele dia, o III Encontro Nacional de Estudantes (ENE), cujo objetivo maior era reorganizar a UNE (União Nacional dos Estudantes), então na ilegalidade. O ENE havia sido terminantemente proibido pelo governo, e sua realização já havia sido impedida, dias antes, em Belo Horizonte e, em seguida, no campus da Universidade de São Paulo (USP).

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Em desafio aberto à repressão, os estudantes conseguiram burlar a vigilância policial e realizar o encontro na PUC. Na noite daquele mesmo dia ainda se comemorava o feito quando a polícia investiu violentamente contra os estudantes, agredindo e prendendo centenas deles e depredando as dependências da PUC, que havia permitido que o encontro se realizasse em seu campus.

É um pouco dessa história que contamos nesta matéria intitulada “Noite de violência: A invasão da PUC-SP em 1977”. Ela é também um pré-lançamento da Página Especial “Pelas liberdades democráticas: O movimento estudantil em 1977”, que estamos produzindo e será publicada no portal da Fundação Perseu Abramo em 2007.

crédito - imagens: Jornal da PUC

Apresentação

Em 1977 o movimento estudantil (ME) abriu a brecha para manifestações de rua na luta democrática. Passeatas e atos públicos estudantis, localizados inicialmente em São Paulo, estenderam-se para o resto do país e contribuíram para o clima de efervescência política do fim da década, marcada por mobilizações grevistas e de diversos movimentos sociais contra a ditadura e pela democracia. O movimento estudantil da época tinha diversas tendências com visões políticas diferenciadas, mas com um sentido forte de coletivo e representação em torno de suas entidades, que possibilitaram a formação de lideranças — boa parte das quais participou das lutas sociais e políticas dos anos 1980 e da formação do Partido dos Trabalhadores.

Um dos momentos marcantes daquele momento foi a realização, apesar da forte repressão, da reunião que possibilitou a reconstrução da UNE, com a efetivação do III ENE (Encontro Nacional dos Estudantes), e a invasão da PUC-SP pela repressão, em resposta à realização do Encontro, ambas ocorridas em 22 de setembro de 1977.

Nosso objetivo com a publicação dos textos que compõem esta página é recuperar parte destes acontecimentos poucos conhecidos pelas novas gerações e produzir uma reflexão sobre o significado do movimento estudantil e sua importância naquela conjuntura histórica e, ao mesmo tempo, levantar questões sobre o papel dos jovens, e particularmente dos estudantes, nos processos de transformação política do país.

O papel da PUC

Um lugar histórico

Por Marco Aurélio Garcia1

Texto extraído da exposição feita na sessão de abertura do Seminário “Reorganização do Movimento Estudantil — 20 anos”, realizado pela Fundação Perseu Abramo na PUC-SP de 22 a 25 de setembro de 1997.

A Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores, decidiu estruturar um projeto de história e memória do PT. Entendemos que esse projeto não poderia se circunscrever exclusivamente a uma história institucional do partido, mas que deveria abordar a vida partidária na sua complexidade, isto é, não só resgatar os congressos e encontros partidários, a trajetória dos dirigentes, as grandes polêmicas; mas também os pequenos fatos, as pequenas personagens, que em realidade constituíram e deram carne e osso à trajetória dessa experiência política do País. E, ao mesmo tempo, nos pareceu de fundamental importância que um projeto de memória e história do Partido dos Trabalhadores procurasse também fazer uma reflexão sobre as circunstâncias históricas, nacionais e internacionais, que cercaram e presidiram, não só o surgimento, como o desenvolvimento do PT. Assim, teremos oportunidade de discutir neste seminário como as mobilizações ocorridas em 1977 no movimento estudantil, da mesma forma que as de 1978 no movimento operário e em setores da periferia das grandes cidades brasileiras, tiveram uma importância, uma incidência muito forte, na constituição de um movimento social de novo tipo no Brasil, que viria a ter como uma de suas conseqüências, não a única, mas, como uma de suas conseqüências, a criação do Partido dos Trabalhadores.

Esse foi um dos primeiros motivos que nos levou, aproveitando a comemoração dos 20 anos da reorganização do movimento estudantil de 1977, a propor a realização desta reflexão para nos ajudar a entender a história partidária e a história social e política do país nestes últimos anos. Por outro lado, nos pareceu também que havia uma segunda razão para que realizássemos este seminário, ela é exatamente – e olhando para o público aqui presente eu vejo que ela se fez perfeitamente justificada — o fato de que o movimento estudantil passou por mutações muito profundas nestes 20 últimos anos. Não são poucos aqueles que têm, inclusive, um olhar crítico sobre o que é o movimento estudantil hoje. Talvez seja de importância, para os que estão preocupados em refletir sobre a questão do movimento social, tomar como um dos parâmetros, o que foi a reorganização de 1977.

Assim, há uma questão que nos pareceu, também, de fundamental importância. Em que medida, pensando o movimento de 1977, teríamos condições de iluminar um pouco a discussão sobre as ligações entre os diversos períodos e os caminhos, ou descaminhos atuais, do movimento estudantil? Acho que esses são elementos que por si sós justificam a realização deste evento.

Poderíamos acrescentar um terceiro elemento, que pode parecer secundário, mas que eu acho que tem uma importância muito grande. O que observamos, é que, desde o momento em que pessoas se mobilizaram para que este seminário pudesse se realizar, essa mobilização produziu uma enorme convergência daqueles que participaram ativamente dos acontecimentos importantes do ano de 1977, propiciando um reencontro de militantes daquele período hoje incorporados às mais variadas atividades. Caberia registrar, a título de exemplo e para agrado nosso, a presença aqui do ex-deputado Arnaldo Jardim e do vereador Henrique Pacheco, ambos destacados participantes do movimento estudantil daquele período. O que demonstra cabalmente que eles não estão aqui na condição de ex-combatentes, mas de atuais combatentes de causas distintas, mas seguramente ligadas ao que foi aquele período histórico.

Eu não poderia encerrar essa breve introdução, sem fazer uma menção específica das razões que nos levaram a escolher a Pontifícia Universidade Católica como local de realização deste seminário, aproveitando para enfatizar a lhaneza da acolhida que o Magnífico Reitor da PUC — o professor Ronca, que nos honra com sua presença nesta mesa – nos está dispensando. Não foram simplesmente razões de praticidade, tendo em vista que a PUC é sabidamente um lugar atraente, que nos levaram a propor que este seminário se fizesse aqui. Foram fundamentalmente razões de natureza histórica: não podemos eliminar de maneira nenhuma da nossa memória dois acontecimentos de extrema importância que cercaram a reorganização do movimento estudantil e que em certa medida são emblemáticos desse período. Um deles, sem dúvida nenhuma, foi a realização da reunião da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) em 1977. A SBPC vinha, desde os anos 1973-1974, transformando-se em um grande fórum de debates para repensar o Brasil, não só no que diz respeito ao imperativo de democratizar o país, mas, sobretudo, de compreender que essa democratização tinha que transcender o estrito terreno da modificação institucional e deveria abranger também o campo da democratização social. Não foi à toa que os debates da SBPC, a partir de então, passaram a ser um importante fórum de elaboração dos intelectuais brasileiros associados à universidade, que assumia naquele momento um papel crítico, como corresponde a toda universidade assumir. Mais do que isso: passaram a ser o local privilegiado para realização de painéis e mesas-redondas em que se discutiam, com a participação de um grande público e com grande cobertura de imprensa, os mais importantes problemas que afligiam a sociedade brasileira naqueles anos de opressão. Oxalá, nós tivéssemos, hoje, a maioria das universidades brasileiras possuídas do mesmo espírito crítico que tínhamos naquele momento. No ano de 1977 essa movimentação alcançava o seu ápice e todos aguardavam ansiosamente a realização da reunião anual da SBPC no campus da Universidade de São Paulo. As autoridades não permitiram que isso acontecesse: vetaram a reunião no campus da USP. Foi então que, corajosamente, a PUC aceitou o papel histórico de sediar a 29a reunião da SBPC. Eu menciono este como um dos episódios mais significativos da luta pela preservação da dignidade universitária.

O segundo elemento, mais conhecido, é o ato de vandalismo, de brutalidade, que a Pontifícia Universidade Católica sofreu dois meses depois, quando foi invadida pelas tropas da Polícia Militar, a mando, sem dúvida nenhuma, do regime ditatorial, com o objetivo de impedir a realização do III Encontro Nacional dos Estudantes, passo decisivo no seu processo de reorganização. As conseqüências foram, como é sabido tremendamente trágicas, e poderiam ter sido inclusive mais trágicas ainda do que o foram. Nesses dois episódios a PUC foi um território exemplar, como tem sido desde então e como esperamos que continue a ser.

Assim é que, hoje, temos a felicidade de fazer uma reflexão histórica, num lugar histórico. Fazemos uma reflexão histórica, não apenas com os olhos voltados para o passado, mas tentando resgatar do passado mais do que episódios e personagens, tentando resgatar, fundamentalmente, aquelas esperanças que existiam no passado e que cremos que devam continuar alimentando a nossa ação futura.

Caminhos para a democracia

Por Antônio Ronca2

Texto extraído da exposição feita na sessão de abertura do Seminário “Reorganizacao do Movimento Estudantil — 20 anos”, realizado pela Fundação Perseu Abramo na PUC-SP de 22 a 25 de setembro de 1997.

Com muita esperança, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo recebe neste 22 de setembro o Partido dos Trabalhadores e a Fundação Perseu Abramo. Entre o PT e a PUC existe uma identidade, no anseio, na luta pela construção de uma sociedade mais justa e mais solidária. Neste momento, saúdo o Marco Aurélio Garcia, a Zilah Abramo, e especialmente a Cristina Raduan, cuja luta tive oportunidade de acompanhar, pelo menos nos últimos dois anos, até este mês, quando ela finalmente conseguiu receber uma indenização do Estado, por conta daquilo que ela passou e sofreu naquele 22 de setembro de 1977. Fez-se justiça, mas não se reparou com certeza a dor e a humilhação a que a Cristina esteve exposta durante 20 anos, para tentar obter o que já era direito seu, reconhecido pela justiça — a indenização. Esse dia, 22 de setembro, para nós da PUC de São Paulo, é uma data trágica, quando recordamos que estudantes nossos tiveram seus corpos marcados pelas bombas da ditadura e que esse templo da liberdade, que a PUC sempre quis ser, teve o seu campus invadido. Mas isso não tirou o ânimo de professores, estudantes e funcionários. Eu acho que é importante ressaltar, que, além da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) que acolhemos em 1977, além do encontro dos estudantes, também acolhemos todos, ou pelo menos um bom número de professores cassados das universidades estatais, que estavam sendo impedidos de voltar a lecionar nas universidades públicas. A PUC foi a primeira universidade do Brasil a ter o seu reitor escolhido por eleição direta, com a participação de professores, funcionários e alunos. E além disso, é importante salientar, tivemos dois incêndios criminosos no teatro da universidade, marca da repressão, dois incêndios em que se via claramente que a tentativa era de calar a boca e impedir que esta universidade continuasse a ser este espaço que sempre quis ser.

Neste momento, como reitor da instituição, mas também, com certeza, em nome de professores, funcionários e alunos, acho que é importante reafirmar o compromisso de continuar construindo uma universidade democrática, em que as pessoas possam efetivamente se manifestar livremente, e um país onde esta universidade tenha uma inserção social na construção de um Brasil diferente. Com certeza este é também o sonho do PT. Foi por isso que fizemos questão de receber vocês, Marco Aurélio, nesta sala, neste ambiente, para que a recordação, a memória do que significou aquele dia para esta universidade, seja para nós uma tomada de consciência de que aquele ato não pode se repetir no nosso país. Espero que efetivamente este seminário consiga mostrar, ainda mais, que caminhos devemos trilhar para que a democracia seja instalada de fato e não apenas de direito. A democracia não significa apenas eleger um presidente, significa dar condições de vida digna a um povo, para que ele efetivamente possa ter condições de exercer a sua liberdade e todos os seus direitos humanos. Eleição é condição necessária, mas não suficiente. A massa de excluídos, a massa de desempregados aponta para o fato de que ainda não somos uma democracia. E que precisamos continuar lutando. Acredito que este momento, este seminário, com certeza contribuirá para mostrar caminhos para a continuidade dessa luta e a PUC não se furtará a estar nesta caminhada junto com o PT, para que possamos ter uma sociedade na qual um coronel Erasmo Dias não tenha mais condições de fazer o que fez naquela noite fatídica na nossa universidade. Com muito afeto, com muita esperança, a PUC os recebe aqui, certos de que a luta continua. Muito obrigado!

Relato da invasão da PUC

Diretório Central dos Estudantes da PUC-SP

A invasão

No dia 22 de setembro de 1977, aproximadamente ao meio dia, iniciou-se no Salão Beta na PUC uma Assembléia Estudantil Metropolitana. Essa Assembléia visava a decidir as medidas a serem tomadas em protesto pelo cerco policial da USP [Universidade de São Paulo], da PUC [Pontifícia Universidade Católica] e da FGV [Fundação Getúlio Vargas], no dia 21, que impediu a realização do III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE). Encerrada às 14 h., deliberou a realização, à noite, em frente ao TUCA, de um Ato Público de repúdio à repressão ao III ENE.

Simultaneamente à assembléia, em condições precárias, delegados de vários Estados se reuniram e realizaram o III Encontro Nacional dos Estudantes na PUC.

Às 21 horas, iniciou-se o Ato Público, com a presença de cerca de 2.000 estudantes

Estava sendo lida em coro uma Carta Aberta denunciando as medidas policiais tomadas no dia 21, quando nas esquinas das ruas Monte Alegre e Bartira, pararam várias viaturas policiais comandadas pelo Secretário de Segurança Pública do Estado.

Investigadores civis e tropas de choque desceram das viaturas, bateram as portas com violência e começaram a dar cacetadas e a jogar bombas nos manifestantes que se encontravam sentados.

Devido à violência da investida, os estudantes se levantaram e correram para a entrada da PUC, vários em pânico. Os policiais os perseguiram, histéricos, dando cacetadas e jogando bombas que expeliam gás, outras que soltavam chamas e outras ainda que espirravam líquidos que queimavam a pele. Os estudantes que entraram na PUC se chocaram com outros que estavam saindo das classes e indo embora para a casa. Tudo isso contribuiu para aumentar o pânico, fazendo que vários estudantes caissem na rampa e fossem pisoteados e queimados.

Vários estudantes conseguiram escapar, descendo a rua Monte Alegre e outros pelos fundos da PUC. Mas os policiais, agindo de maneira coordenada e rápida, cercaram o prédio logo em seguida, invadindo-o também pelas entradas das ruas Bartira, Ministro de Godoy e João Ramalho.

Consumado o cerco e a invasão, aumentou a violência.

No restaurante, vários estudantes e professores, em intervalo de aula, estavam fazendo um lanche ou tomando café, quando viram a correria na rampa. Assustados, fecharam a porta de vidro do restaurante. Minutos depois chegaram os policiais, que quebraram a porta a golpes de cassetetes e invadiram o restaurante, espancando e insultando alunos, professores e funcionários.

Alunos que estavam nas sedes das entidades estudantis foram expulsos à força, muitas vezes sem ter tempo sequer de recolher seus documentos e material didático. No DA [Diretório Acadêmico] Leão XIII e no CA [Centro Acadêmico] 22 de agosto, colegas que jogavam xadrez viram os tabuleiros serem jogados longe a pontapés.

As sedes dos DA de Filosofia e Letras, DA Leão XIII, CA de Ciências Sociais e Serviço Social, CA 22 de agosto e do DCE [Diretório Central dos Estudantes] foram totalmente depredadas. Portas que estavam fechadas apenas com o trinco foram arrombadas a pontapés. As gavetas foram arrancadas fora das mesas e seu conteúdo jogado no chão.

Em vários restos de portas ficaram bem nítidas as marcas dos pontapés. Em diversas salas foi pichada a sigla CCC (Comando de Caça aos Comunistas), organização terrorista que, como a AAB [Associação Anticomunista Brasileira], vem ameaçando a segurança da população. Uma lista enorme de bens das entidades foi levada pela polícia.

A biblioteca também foi invadida e seus ocupantes expulsos aos gritos e ameaças de cassetetes. Os policiais jogaram vários livros no chão.

Entraram com violência e, usando palavras de baixo calão, nas salas de aula, prendendo todos os seus ocupantes, e muitas vezes espancando-os.

Alunos que participavam de um ensaio de coral na Casa Paroquial também foram presos.

Estudantes feridos, principalmente os que foram queimados pelas bombas que provocaram chamas, só a muito custo foram atendidos. Os policiais não só demoraram muito para levá-los à ambulância, como espancaram os colegas que procuravam atendê-los.

Cabe ressaltar que os policiais, principalmente os investigadores à paisana, comportavam-se com a máximo de violência e arbitrariedade. Espancavam quem quer que passasse à sua frente. Várias pessoas viram um colega que sofreu empurrões e cacetadas e, quando caiu no chão na rampa do prédio novo, levou pontapés. Mesmo depois de dispersado o Ato Público, continuaram jogando bombas, Vários policiais mostravam-se demasiadamente excitados, sem autocontrole, com os olhos completamente “vidrados”. Insultos, palavras de baixo calão e provocações eram feitos o tempo inteiro. Toda essa violência era absolutamente desnecessária, pois não houve, em nenhum momento, qualquer tentativa de reação por parte das vítimas da agressão policial.

No estacionamento de automóveis, mais de 1.500 professores, funcionários e alunos ficaram sentados pelo menos uma hora no chão de pedregulhos, submetidos à triagem policial. Investigadores circulavam nervosamente entre as pessoas sentadas e quando reconheciam na multidão alguma pessoa que procuravam, ou quando alguma pessoa muito ferida exigia ser levada a um hospital, abriam caminho a golpes de cassetete e pontapés entre a multidão. Todas essas violências foram presenciadas pelo Cel. Erasmo Dias, que nada fez para impedi-las.

Cerca de 700 estudantes foram conduzidos em ônibus da Prefeitura ao Batalhão Tobias de Aguiar. Alguns foram conduzidos ao DEOPS [Delegacia Estadual de Ordem Política e Social]. Todos esses colegas foram fichados. Entre os presos, é bom lembrar que havia grande número de estudantes que estavam sem documentos por tê-los perdido durante a invasão. No DEOPS colegas foram submetidos a sevícias e a tratamentos humilhantes. Alguns tiveram que prestar depoimento apoiados numa perna só, ameaçados de serem espancados se perdessem o equilíbrio ou se uma perna encostasse na outra. Um colega, que foi violentamente espancado por investigadores, reclamou, a um delegado, do tratamento a que estava sendo submetido. Então o delegado, em tom irônico, pediu a um investigador que “cuidasse do caso”. Esse investigador levou o colega a um canto e continuou o espancamento.

Desses 700 colegas, 37 foram logo em seguida enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Esses estudantes, vítimas da invasão, passaram a ser interrogados como réus num processo que corre pelo DEOPS e, em outro, que corre pela Polícia Federal. De outro lado, a autoridade que assumiu a responsabilidade pela invasão e pelas violências cometidas é agraciado pelo Ministro do Exército com a “Medalha do pacificador”, a mesma que foi atribuída ao Dr. Harry Shibata (Médico legista que ficou conhecido por ter assinado o atestado de óbito de Vladimir Herzog, em 1975, declarando que ele havia se suicidado, apesar de todas as evidências de que ele havia sido torturado e morto nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, como foi comprovado posteriormente).

Considerações finais

1. A invasão, ao que tudo indica, foi premeditada.
O ato público foi apenas um pretexto para justificar a invasão policial. Se o objetivo do Cel. Erasmo Dias fosse apenas dissolver o ato, poderia tê-lo feito usando formas menos violentas, pois sua realização foi decidida na Assembléia do meio-dia, onde havia muitos informantes da polícia.

2. A invasão teve os seguintes objetivos:
a) Represália à realização do III ENE. Este regime que retirou toda a autonomia das entidades estudantis, que fechou os DCEs, UEEs [União Estadual dos Estudantes] e a própria UNE [União Nacional dos Estudantes], que transformou os sindicatos em corporações pelegas, que reprime e tortura aqueles que procuram se organizar em defesa de seus legítimos interesses, não vai deixar o nosso movimento avançar sem também o reprimir, pois este regime se sustenta na exploração da maioria da população e não tolera a reorganização dos vários setores da população em defesa dos seus direitos.
b) Atingir com brutalidade a Reitoria da PUC, que tem se caracterizado pela independência frente às pressões do regime, como quando cedeu as instalações da Universidade para a 29ª Reunião Anual da SBPC, pela defesa intransigente da Autonomia Universitária.

3. Reafirmamos o propósito de continuar a luta em defesa da autonomia universitária. É necessário se pôr fim à triagem ideológica que vigora em todas as Universidades. É necessário denunciarmos pressões financeiras que a PUC está sofrendo desde a realização da Reunião da SBPC.
Numa Universidade onde não predomine o obscurantismo cultural, é indispensável a ampla liberdade de pesquisa e debate. Nesse sentido, quaisquer livros e publicações, por mais polêmicos que sejam, devem circular livremente e serem analisados segundo o interesse acadêmico e não segundo o prisma de policiais em função de censor.

4. As entidades estudantis se regem por princípios de democracia e representatividade. Decisões referentes a atos públicos, tirada [eleição] de delegados para os congressos estudantis e eleição de diretorias são tomadas pelo conjunto dos estudantes, em assembléias e eleições onde não há Lei Falcão, nem AI-5, nem Lei de Segurança Nacional. Nas assembléias, os únicos elementos infiltrados são policiais disfarçados.
Nas entidades estudantis os alunos se organizam para defesa de seus interesses acadêmicos e para se posicionarem frente a questões políticas nacionais.
Reafirmamos o propósito de continuar lutando em defesa de nossas entidades representativas, visando ao fortalecimento dos CAs e dos DCEs livres, a criação de UEEs em todos os Estados e a reconstrução de uma entidade estudantil em nível nacional.

5. Reafirmamos também que as intimidações policiais não diminuirão as nossas lutas por Liberdades Democráticas. Acreditamos que invasões como a que sofreu a PUC só deixarão de ocorrer quando o povo, através de uma Assembléia Constituinte Livre, Democrática e Soberana, substituir o regime policial em que vivemos, por um regime que atenda aos interesses da maioria da população.

São Paulo, 22 de novembro de 1977, DCE-LIVRE da PUC/SP

Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 28 de novembro de 1977.

Depoimentos

O III ENE e a invasão da PUC

Por Laís Abramo3

Eu estava lá, naquela sala de aula da PUC, onde conseguimos finalmente realizar o III Encontro Nacional dos Estudantes, depois das tentativas frustradas de Belo Horizonte, em junho, e da USP alguns dias antes. Cercados pelas tropas do então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, coronel Erasmo Dias, com os companheiros dos outros estados sendo perseguidos nas ruas de São Paulo, decidimos que deveríamos nos ater ao fundamental. Deixar de lado por um momento as teses, contrateses, discussões e mais discussões sobre o caráter da Política Educacional do Governo, o caráter da conjuntura pela qual estávamos passando ou da luta democrática na qual todos estávamos envolvidos. Resolvemos deixar tudo isso de lado por um momento e nos unir em torno do que era realmente fundamental: avançar na reorganização do movimento estudantil em nível nacional, avançar na reconstrução da UNE (União Nacional dos Estudantes), nossa entidade nacional destruída pela ditadura quase uma década antes.

Enquanto alguns dos diretores organizavam uma reunião aberta com os estudantes no Salão Beta da PUC, nós, os que não estávamos alocados a outras tarefas, por exemplo, os sistemas de comunicação e informação, nos reunimos disfarçadamente em uma das salas de aula daquela universidade que, alguns meses antes (julho de 1977), já tinha tido a coragem e a energia para sediar a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Sentados como alunos em uma das salas de aula do segundo andar do Prédio Novo, com um companheiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul à nossa frente, fingindo-se de professor (para que quem passasse pelos corredores — e eles estavam cheios de “tiras” — pensasse que se tratava simplesmente de uma aula qualquer), rapidamente chegamos a um consenso e rapidamente concretizamos nossas esperanças de avançar na reorganização do nosso movimento, criando a Comissão pró-UNE.

Depois disso — o III ENE em si, realizado nessas circunstâncias, não durou mais de uma hora — saímos apressadamente dali. Havíamos conseguido driblar as forças policiais que nos perseguiam desde junho em Belo Horizonte, a sanha feroz do coronel Erasmo Dias, que, em várias ocasiões, havia esbravejado, declarado, prometido, jurado e reiterado, impedir a realização do III ENE.

Eu saí da PUC levando comigo dois companheiros e uma companheira — do Rio, Minas, Rio Grande do Sul. Estava encarregada de cuidar da segurança deles até o dia seguinte, quando iriam embarcar de volta para os seus respectivos estados. Algum tempo depois, a realização do III ENE foi comunicada à assembléia estudantil reunida no Salão Beta. Quando estacionava o carro logo depois, na porta da casa dos meus pais na Lapa, ouvimos pelo rádio que, apesar de todas as proibições, os estudantes haviam conseguido realizar o III ENE. Imaginávamos a fúria do Erasmo ao receber a notícia.

Entre nós o clima era de comemoração. Estávamos entusiasmados porque, finalmente, com aquele reunião, realizada clandestinamente (ainda que numa sala de aula da PUC, em plena luz do dia), havíamos conseguido duas coisas muito importantes: em primeiro lugar, dar mais um passo no processo de reorganização do movimento estudantil. Em segundo lugar, provar, uma vez mais, que éramos capazes de nos organizar e manifestar apesar das proibições existentes na legislação vigente, e da repressão policial. Além dos três companheiros a que me referi, estavam nessa tarde na casa dos meus pais minha irmã Helena, caloura da Cências Sociais da USP, mas já engajada na nossa luta e Beatriz Tibiriçá (a Beá), que havia integrado a primeira diretoria do DCE-Livre da USP.

Nesse clima de festa, não imaginávamos as terríveis conseqüências que a nossa façanha teria, nessa mesma noite, algumas horas mais tarde, quando se concretizou a invasão da PUC.

Minha mãe, teve essa clarividência. Quando chegou em casa e viu a gente comemorando daquele jeito, caçoando do Erasmo, ficou apavorada. Mais realista do que nós, previu o que aconteceria na PUC naquela noite (é claro, não previu as bombas, a selvageria da repressão, mas previu que muito provavelmente aconteceria algo grave) Ela era, na época, uma combativa participante da Comissão de Mães pelos Direitos Humanos, que tinha se organizado naquele ano para apoiar as mobilizações dos estudantes.

No fim da tarde, quando ficamos sabendo que tinha sido convocado o ato de comemoração lá na PUC, ela insistiu para que tentássemos dissuadir os promotores do ato de realizar esse evento, que muito provavelmente seria reprimido com violência. Dissemos que isso seria impossível porque a realização do ato tinha sido decisão de assembléia, mas que era importante mandar alguém para retirar da manifestação os delegados de outros estados que porventura estivessem participando. Eu não podia ir porque tinha estado no encontro da manhã e porque tinha que tomar conta do conjunto dos delegados. Mário, meu irmão, também militante ativo do movimento, era uma pessoa muito visada. Sobravam a Lena e a Beá para essa missão. Minha mãe, com justa apreensão, não gostou nada da idéia de deixá-las assumir esse risco (a Lena tinha só 18 anos). Mas não havia outro jeito.

O meu pai estava no hospital, recém-operado. O Mário foi levar minha mãe pra passar a noite com ele, e, no caminho, deixou a Beá e a Lena nas imediações da PUC. Elas chegaram quando já tinha começado o ato e estava sendo lido o manifesto preparado para a ocasião. Logo, a euforia que reinava entre os estudantes pelas realizações da manhã mudou para um pânico generalizado. A polícia invadiu a PUC e as duas emissárias foram vítimas da violência: Helena chegou a desmaiar com a fumaça desprendida das bombas de “efeito moral”, e só escapou de sofrer queimaduras por ter sido socorrida a tempo por alguns colegas. Beá machucou o pé e o joelho quando tentava escapar das bombas. Ambas foram detidas.

Quando ficamos sabendo da invasão da PUC e das prisões, foi a maior confusão; ninguém sabia direito o que fazer. Nos reunimos — os que tinham escapado da repressão policial — na casa da Carmen Cintra do Prado, nossa colega da Física, tentando nos organizar para enfrentar mais aquela situação. Eu, além de tudo, estava muito preocupada com a Lena. Minha mãe e meu pai no hospital, eu apavorada com a idéia de que meu pai ficasse sabendo que a Lena tinha sido presa. Afinal de contas, ele estava convalescendo de uma operação grave.

A partir de uma certa hora da madrugada, o pessoal começou a ser solto. Para que os estudantes fossem liberados, a polícia exigia a presença de alguém da família que se responsabilizasse por eles. O que fazer com a Lena? Como eu disse, meu pai e minha mãe estavam no hospital, eu e o Mario não podíamos aparecer, arriscávamo-nos a ser presos também. Não havia na família quem pudesse se apresentar. Aí, as valorosas integrantes da Comissão de Mães entraram em ação: organizaram o resgate dos estudantes que estavam em situação como essa da Lena (sem mães e/ou pais disponíveis para o resgate), escolhendo “mães postiças” para se apresentarem no lugar dos verdadeiros pais.

E foi assim que a Lena foi solta. Já era madrugada avançada, quase manhã, e a minha grande preocupação era chegar com ela no hospital antes que meu pai acordasse e ficasse sabendo do que tinha acontecido. Felizmente, isso foi possível. Quando minha mãe, tomando conhecimento pelos jornais matutinos do que tinha sido a repressão na PUC, telefonou para a nossa casa, foi possível dizer que a Lena já tinha sido liberada e estava a caminho do hospital.

O malfadado dia da invasão da PUC

Por Beatriz Tibiriçá (Beá)4

Havia sido uma semana agitada, muitas manifestações, tentativas frustradas de realizar o III ENE, alunos, famílias, amigos, outros setores, todos em estado de alerta e em pé de guerra. Eu fazia parte da Comissão de Segurança e meu nome completo, e ponha nome nisso, já havia sido publicado numa matéria de capa do Estadão da véspera do “dia D”. Mas, mesmo assim, eu ainda não tinha sido presa naquela semana atribulada e era a menos visada da diretoria do DCE Livre da USP “Alexandre Vannucchi Leme”.

Na manhã do malfadado dia fizemos uma Assembléia na PUC. Assembléia tensa e difícil. Somente alguns poucos sabiam que era uma assembléia de fachada, para proteger o encontro clandestino que ocorria em alguma sala da PUC, lotada de delegados de outros estados, os mais “queridos” pela repressão. Os poucos que sabiam do que acontecia avaliavam que qualquer excesso seria uma provocação notável, mas, não podíamos tornar isso claro para todos os que participavam da Assembléia. Neste clima e nesta situação surreal, a Libelu (Liberdade e Luta) aprovou, por ampla maioria, a realização, à noite, de um Ato Público na PUC, para comemorarmos nossas vitórias.

Sabíamos do risco que estávamos correndo. A Comissão de Segurança decidiu que nenhum delegado de outro estado deveria comparecer ao Ato da noite. Passamos a tarde confabulando como enfrentar esse novo desafio, entre a alegria de ter realizado o III ENE e o temor pelo que estava por vir. Poucos da Diretoria do DCE Livre da USP poderiam estar à noite, tinham que ser preservados. Saí para ir para a PUC da casa dos Abramos. No carro, comigo, a Helena Abramo, caloura das Ciências Sociais. Dona Zilah ainda pediu: “Tome conta da Lena”!

Chegando na PUC, uma sensação de que tudo estava estranho tomou conta de mim. Era uma calmaria densa, daquelas que precedem um forte temporal. Logo de chegada, tivemos um bate-boca com um pessoal da Convergência de Brasília que não havia aceitado as recomendações da Comissão de Segurança.

Fomos para a frente do TUCA (Teatro da Universidade Católica), local do Ato. O Hugo Lenzi coordenava a mesa pela Refazendo. O Ato ia rolando, eufórico, até que o temporal despencou: não dava para visualizar direito o que acontecia, em questão de segundos era fumaça para todo lado, estava montada uma praça de guerra. Eu agarrei a Lena e junto com mais um grupo grande, sabe Deus como, nos alojamos dentro do teatro. Como eu tinha prometido para Dona Zilah, tomei tanta conta da Lena que ela acabou sendo presa junto comigo.

O fato de estarmos no teatro só retardou um pouco a nossa prisão. Fomos os últimos a chegar ao estacionamento onde agrupavam os estudantes para colocar nos ônibus que nos levaria presos.

Os alunos de Ciências Sociais da USP estava em peso naquele estacionamento. Fomos de ônibus para o batalhão Tobias de Aguiar. Parecia longe, muito longe. O ônibus dava voltas para nos enganar e para evitar que fôssemos vistos. Chegando lá, fomos separados, meninos ao relento, num cercadinho, ao lado de um cercadinho onde ficavam os “meganhas” que aguardavam ordem de ir para a rua pegar estudantes. Eles eram tratados com a mesma truculência que os estudantes. Numa área coberta, as meninas. Éramos muitos, muitos mesmos. Todos tinham que responder a um questionário padrão. Aos poucos, começaram a separar os que iam para o DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), na cidade. Lá fui eu. Junto estava o Plininho, calouro, filho do exilado Plínio de Arruda Sampaio, e mais alguns de diretorias de entidades, filhos de subversivos, “reincidentes” etc. Quando chegamos no DOPS, veio a tática da humilhação, fiquei um tempo considerável obrigada a fazer o quatro com as pernas, o que deixou o Plininho indignado. Depois desceram os que eram de entidades para uma salinha no que parecia ser o porão. Além de já termos visto alguns infiltrados, agora revelados, interrogando gente, estávamos indo para o famoso porão do DOPS, e ainda tivemos que ouvir que não sairíamos tão cedo. No porão, encostaram um jovem repressor com o discurso treinado: “Tá vendo, você aqui, nesta situação, e os líderes no bem bom, só se aproveitando da sua ingenuidade”…. Eu, na minha “ingenuidade”, bati no peito e falei: “Mas eu sou liderança, sou do DCE Livre da USP”, com todo orgulho que nós tínhamos na época. Ponto para nós, o cara se desconcertou e foi embora. Iam nos levando aos poucos para tomar depoimento, abusavam do impagável teatro do repressor malvado e do repressor bonzinho, tentavam nos jogar uns contra os outros. Mas tomavam suas “invertidas”. A mais significativa para mim foi quando terminei meu depoimento, no qual reafirmei toda plataforma da Diretoria do DCE, e da Refazendo. Eles foram buscar na rua testemunhas para assinar e dar mais veracidade àquela parafernália. Subiu um senhor (digo isso com os olhos jovens da época, talvez tivesse uns 40 anos), aparentando ser uma espécie de caixeiro viajante, tinha uma maleta e olhos baixos. Ouviu atentamente todo o depoimento, as liberdades democráticas, contra o ensino pago, por melhores condições de vida e trabalho, toda plataforma explicada rapidamente. Quando acabaram de ler, ele perguntou: “Ela falou tudo isso?”. “Falou”, responderam. Ele perguntou para mim: “Você falou?”. Só pude confirmar com a cabeça. Ele levantou os olhos e disse: “Então, não assino!”. E não teve quem fizesse o cara assinar. Foi embora com sua maleta, deixando para trás meus interrogadores nervosos e eu, caladinha, mas, feliz e tranqüila.Tinha feito a coisa certa. Nunca soube quem era aquele senhor, mas… sempre que posso, lembro dele, quem dera um dia ele saiba o quanto foi importante sua atitude naquele dia de medo.

Mais algumas horas e um dos investigadores me pegou, me levou para a rua, me deu um dinheiro e parou um táxi. O motorista ficou assustado diante da visão daquela garota, meio desfigurada, sem saber direito o que estava acontecendo, com um pé descalço com uma meia verde de futebol, um joelho estourado, no outro pé um tênis novinho, lindo, de naylon azul celeste. Fui para casa com aquele motorista mudo, que nem conferiu o dinheiro que eu dei (eu também não conferi). Lá já tinha a querida Comissão de Mães para saber o que tinha acontecido. Minha mãe, atormentada, abriu um sorriso e me acolheu.

No dias seguintes, ainda voltei à PUC para ver se achava o outro pé do meu tênis novo, comprado com tanto sacrifício. Me deparei com uma pilha de roupas e sapatos, visão do inferno que tínhamos enfrentado. E não achei meu tênis, claro. Mais alguns dias e fui enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Mas nada conseguia tirar o gosto de vitória que eu sentia!

Entraram na PUC sem vestibular.

Por Marcos Napolitano5

Trecho do capitulo II (“O movimento estudantil e a questão democrática”) do livro Cultura e poder no Brasil contemporâneo, de Marcos Napolitano (Curitiba, Ed. Juruá, 2005, 3º reimpressão).

Enquanto o ambiente político-institucional se agitava, os estudantes seguiam o seu curso de manifestações públicas contra o regime. Neste processo de reconquista das ruas, um outro evento é digno de registro: a missa dominical realizada no dia 17 de setembro, na Igreja Nossa Senhora da Penha, a mesma das comemorações de 1º de maio, seria mais uma missa dominical, se ali não tivesse se realizado um “Ato de Solidariedade aos Injustiçados e Oprimidos”, coordenado pelo jurista Hélio Bicudo. Dentro da Igreja 1.500 pessoas reuniram-se, muitas delas donas de casa e operários, engrossados por estudantes; fora, permaneceu um pelotão de choque da PM, disposto a dissolver a passeata, posteriormente realizada. A novidade do evento constituiu no fato de que ele materializava, num ato comum, a união de segmentos sociais das camadas mais populares com o movimento estudantil (porta voz da classe média de oposição) que havia rompido o esvaziamento das ruas imposto pelo regime.

Além da repolitização das ruas, o movimento estudantil dava ênfase à reconstrução de suas entidades políticas. A União Estadual dos Estudantes de São Paulo havia conseguido realizar seu Congresso de reestruturação, em fins de agosto, sem problemas. Mas, justamente, o episódio mais dramático e violento da questão estudantil iria ocorrer no dia 22.09.1977, em função da realização clandestina do III Encontro Nacional dos Estudantes, que deveria consolidar a reorganização da UNE. O Encontro havia sido terminantemente proibido pelo governo e culminaria com a dramática invasão e depredação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela PM.

As “forças da ordem” esperavam que o Encontro fosse realizado no dia 21, na USP. Para evitá-lo, a Cidade Universitária (USP) foi bloqueada e mais de 200 estudantes foram presos. Na verdade, a repressão tinha sido ludibriada pela organização do movimento estudantil: o Encontro estava marcado, secretamente, para a PUC/SP, onde efetivamente ocorreu na tarde do dia 22, numa pequena e discreta sala de aula. Já desconfiada da manobra, à noite, a polícia invadiu o campus para dissolver uma manifestação de estudantes, que na verdade era uma “assembléia-comemoração” pós-Encontro. O saldo da invasão era impressionante: Mais de 1.000 pessoas foram detidas, 92 passaram pelo DOPS e 32 foram enquadradas na Lei de Segurança Nacional. Quatro estudantes foram gravemente feridas. Cerca de 30 salas de aulas e/ou administrativas foram completamente destruídas. Aquela demonstração de força de repressão policial tinha como alvo não só o movimento estudantil, mas a Igreja católica (já consagrada adversária do regime) e outros movimentos que decidiram realizar manifestações públicas. Além disso, era um recado para a própria PUC, que havia abrigado, em julho, a reunião nacional da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência, uma entidade também de oposição, cuja reunião anual fora boicotada pelo Governo.

A invasão da PUC teve grande repercussão nacional e internacional, entre diversas lideranças políticas e sociais. Nos parlamentos (federal e estadual) instaurou-se o debate que culminou, em nível estadual, numa Comissão Especial de Inquérito. O senador Teotônio Vilela, dissidente do regime, que emergia como símbolo nacional de luta pela democracia declarou: “Se eu luto pelas liberdades democráticas, não posso proibir meus filhos de lutarem por elas. Eu defendo a manifestação dos estudantes e deploro toda e qualquer violência contra eles”. O fato chegou a abalar as tentativas de diálogo entre governo e oposição, comandadas por Petrônio Portela [ministro da Justiça].

Pressionado pela opinião pública, o secretário de Segurança de São Paulo, Cel. Erasmo Dias, aproveitou para fazer um balanço das manifestações estudantis: “Em 49 dias nós tivemos sete manifestações de rua, uma a cada cinco dias. A polícia já está exausta, cansada de ficar24, mais 24, mais 24 horas de prontidão, porque elementos subversivos tentam a todo custo desobedecer a Lei vigente, num desafio que está caracterizado como estado de guerra psicológica e até um prólogo de guerra subversiva…”.

O governo de São Paulo ainda montou um “espetáculo” para a imprensa em 26.09.1977, onde exibia o “material subversivo” apreendido na PUC.

A manifestação de truculência da polícia, na invasão da PUC, teve um efeito ambíguo: é inegável que, no curto prazo, ela provocou um refluxo do movimento estudantil, que passou a priorizar seu debate interno, descuidando das alianças mais profundas com outras entidades civis e movimentos sociais. Assim foi que, num ato de protesto em 29 de setembro, entidades como o MDB e o Movimento Feminino pela Anistia, não compareceram “oficialmente”. Aliás esse ato foi realizado em recinto fechado no Departamento de História/USP. Por outro lado, proporcional à comoção causada, ajudou a ampliar a luta do movimento pela democracia, tornando-se um evento altamente simbólico. Neste sentido, a invasão e depredação da PUC serviu para deslegitimar cada vez mais o uso da força contra manifestações pacíficas e desarmadas da sociedade. Ironicamente, o jornal O São Paulo, da Igreja Católica, estampou a manchete: “Entraram na PUC sem vestibular”.

Registros da imprensa da época

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