Depois de 21 anos sem ditadura militar, reforma do ensino superior vem por decretos

Artigo sobre os decretos do governador José Serra e sobre a ocupação da Reitoria da USP em 03 maio de 2007.

Esquerda.net — 05 de junho de 2007

Os estudantes da Universidade de S. Paulo (USP), a mais importante do país, estão a ocupar a reitoria desde o dia 3 de Maio, em protesto contra as decisões do governador do Estado de S. Paulo, José Serra, que consideram um atentado à autonomia universitária. O movimento, entretanto, está a ampliar-se. Três universidades, sendo duas federais, tiveram direcções de curso ou reitorias ocupadas. No âmbito estadual, seis campi da Universidade Estadual Paulista (Unesp), também foram ocupados.
O artigo que publicamos em seguida, de Xenya Aguiar e Reynaldo Turollo Jr., especial para o Esquerda.net, dá-nos conta dos objectivos deste movimento que ameaça espalhar-se para todo o país e que mostra um novo vigor do movimento estudantil brasileiro.

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No primeiro dia de seu mandato como governador de São Paulo, José Serra (PSDB) iniciou uma série de alterações na estrutura do ensino superior. Por meio de decretos e sem ampla discussão com a comunidade académica do Estado, Serra lançou essa medida para formalizar o que já há algum tempo ocorre nas universidades paulistas: a produção de pesquisas e conhecimento que vão ao encontro dos interesses do famigerado mercado.

Numa época de esvaziamento da discussão política no Brasil, os estudantes das universidades estaduais de São Paulo mobilizaram-se, desde a publicação desses decretos, em grupos de discussão e em manifestações de protesto.

A ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo (USP), depois da tentativa frustrada de diálogo entre os estudantes e a reitora da instituição, Suely Vilela, que não compareceu às reuniões agendadas para discutir o assunto, deu fôlego novo às lutas estudantis em todo o país.

O movimento estudantil ganhou corpo em todo o Estado de São Paulo e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Universidade de Campinas (Unicamp) juntaram-se à mobilização contra os decretos do governador Serra, paralisando parte das suas atividades. Ao longo de maio deste ano, outras sete ocupações das diretorias dos campi dessas Universidades ocorreram, espalhadas pelo interior do Estado, e levantaram a discussão sobre os rumos do ensino superior em São Paulo e, em última análise, em todo o país.

"Quem entendia de surf e de hotéis vai entender de ensino superior"

O conteúdo dos decretos mostra a intenção do governo de centralizar nas suas mãos a gestão das Universidades públicas, com a criação da Secretaria de Ensino Superior e a nomeação de José Aristodemo Pinnotti como Secretário. O decreto 51.460 transforma a antiga Secretaria de Turismo do Estado na actual Secretaria de Ensino Superior, o que para o jurista Dalmo Dallari, significa que "quem entendia de surf e de hotéis e de tudo isto vai entender de ensino superior".

Com essa medida, o governo retirou as Universidades da antiga pasta de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico e transferiu-as para a nova Secretaria de Ensino Superior. Além disso, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), maior órgão de fomento à pesquisa, aparece agora desvinculada das Universidades, na também renomeada Secretaria de Desenvolvimento, fragmentando, ainda mais, o sistema educacional do Estado.

A maior polémica quanto aos decretos diz respeito à perda da autonomia das universidades, uma vez que o texto permite a interferência do governo nas decisões internas quanto ao remanejamento de verbas e ao direccionamento de suas pesquisas. O decreto 51.636 estabelece que as universidades paulistas devem prestar contas diariamente, e não mensalmente como acontecia, e submete a sua execução orçamentária e financeira ao governo.

À nova Secretaria, pelo decreto 51.461, está atribuída a função de propor políticas e directrizes para o ensino superior, como a "ampliação das atividades de pesquisa, principalmente as operacionais", de cunho mercadológico e que podem não refletir o interesse público (da população). O mesmo decreto ainda versa sobre as funções de Pinotti na Secretaria, como "administrar e responder pela execução dos programas, projetos e ações da Secretaria, de acordo com a política e as diretrizes fixadas pelo Governador".

A filósofa da USP Olgária Matos, em entrevista à Carta Maior, acredita que "a universidade sabe o que faz, o que precisa e o que conduz", e que agora "o governo que está fora dela vai deliberar se o que a universidade faz está correcto ou não, se tem qualidade ou não". Ela ainda ressalta que "só a idéia de ter um decreto já fere a autonomia."

Manifestação e novo decreto

Reunidos na cidade de São Paulo, no último dia 31, cerca de seis mil estudantes, professores e funcionários da USP, Unesp e Unicamp partiram da reitoria ocupada em marcha rumo ao Palácio do Governo. Na mesma manhã, como tentativa de desarticular a manifestação que já estava programada, Serra publicou um Decreto Declaratório que, segundo ele, apenas explicava os decretos anteriores, argumentando má interpretação de seus conteúdos.

As alterações foram consideradas insuficientes pelos manifestantes. Serra retirou do texto alguns dos pontos mais criticados, como o que dizia respeito às pesquisas operacionais e as funções do Secretário de Ensino Superior. Também "reafirmou" a autonomia financeira, decretando que as Universidades e a Fapesp não necessitariam da autorização prévia do governo para o remanejamento de suas verbas. No entanto, a essência do seu projecto para o ensino superior está garantida em trechos do texto ainda obscuros e de interpretação muito ampla, como a principal função da Secretaria de Ensino Superior de propor "políticas e directrizes para o ensino superior, em todos os seus níveis" e a "busca de formas alternativas para oferecer formação nos níveis de ensino superior". A questão que se coloca é que "formas alternativas" seriam essas?

Além disso, a Fapesp continua desvinculada das Universidades, na Secretaria de Desenvolvimento, gerando dúvidas quanto ao caráter das pesquisas que serão fomentadas e quanto ao acesso dos estudantes ao seu financiamento.

A imprensa (des)informa

Na ida ao Palácio, os manifestantes foram impedidos de seguir o seu trajecto por cerca de 500 policiais militares da Tropa de Choque do Estado. Armados de escudos, cassetetes, gás pimenta e lacrimogéneo, os polícias faziam um cordão de isolamento na rua de acesso ao Palácio.

O congestionamento na capital, causado pelo impedimento à manifestação, alimentou a agenda da imprensa governista, que em vez de discutir as reivindicações dos estudantes, chamou-os de "arruaceiros" e "vagabundos".

A greve dos estudantes, no entanto, continua a ganhar força entre estudantes e sociedade, à revelia das peças publicadas na imprensa oficial brasileira.

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