Emergência e contestação

Segunda-feira, 9 de Julho de 2007

“O futuro é uma espécie de banco, ao qual vamos remetendo, um por um, os cheques de nossas esperanças. Ora! Não é possível que todos os cheques sejam sem fundos…” (Mário Quintana.)

O movimento estudantil atual é um movimento de contestação. O simples ato de apropriação e ressignificação dos lugares públicos que tem lugar nas ocupações, barricadas e bloqueios promovidos por esse movimento é um desafio à ordem que se impõe sobre o espaço e o tempo social. Afirma-se a soberania sobre lugares que antes eram vedados ao próprio olhar; revelam-se os segredos do território tornando públicos espaços que se identificavam cada vez mais com o privado; derrubam-se muros que separavam a universidade da rua e da praça.

Em 1848 e 1871 os operários de Paris atiraram contra o relógio da catedral fazendo explodir o continuum da história. Parando o tempo interrompiam o progresso que os acorrentava à exploração nas oficinas. Também os estudantes atiraram simbolicamente no relógio da catedral parando o tempo de um progresso que lhes confiscava o futuro. Interromperam com suas ações o tempo da urgência burocrática e da rotina administrada que marcam o ritmo da repartição estatal e os submetiam à disciplina de fábrica de diplomados incapaz de cumprir suas promessas. Em seu lugar institui-se o tempo de um estado de emergência social, um estado que configura tanto uma nova situação crítica como uma situação nova que vem à tona.

Um novo território comum ganha seus primeiros contornos e um ritmo diferente subverte a cotidianidade impondo de modo extraordinário um novo espaço-tempo. O caráter difuso ou diversificado das reivindicações desse movimento estudantil não ocultam que a contestação é seu principal objetivo. Refletir criticamente sobre esse movimento é, também, criar as condições para sua consolidação e ampliação. A crítica é sempre arriscada. Ela é engajada, militante, combativa. Mas deve resistir à tentação do populismo, da demagogia, do subjetivismo. O objetivo da análise não é justificar o movimento e sim compreender a situação, criando as condições para tornar a luta mais efetiva. Refletir, de modo prudentemente arriscado a respeito da própria contestação. Esse é o desafio do pensamento crítico.

I

A contestação é um ato negativo ainda incapaz de afirmar uma positividade que lhe seja própria. Sua eficácia radica na capacidade de expressar uma relação de forças da qual ela própria é parte. Na sua condição de discurso, a contestação nega supostos consensos e dilui uma ordem lingüística que aprisionava os dissidentes. A contestação não é apenas o resultado de um desentendimento. Ela não nasce da atribuição por parte de diferentes atores de um significado diferente a um mesmo conjunto de palavras (cf. RANCIÈRE, 1996, p. 11). Em uma situação como esta o acordo entre os significados poderia ser superado por meio de um esclarecimento mútuo que dissipasse os mal-entendidos. Mas quando os indivíduos expressam por meio de seus discursos o radical antagonismo das formas sociais de vida social não há mal-entendidos nem desentendimentos. O que há é o dissenso, o desacordo.

A contestação questiona a semântica e a sintaxe do discurso do consenso, manifestando-se por meio de um léxico político e social e de regras gramaticais que lhe são próprias, daí a dificuldade de ser compreendida ou assimilada por esse discurso. As exigências de clareza, exeqüibilidade e adequação feitas ao discurso da contestação não são senão a reimposição da semântica e da sintaxe da velha ordem. Por meio dessa reimposição o discurso do passado procura controlar o presente e o futuro, ditando seu ritmo e assumindo como legitimo exclusivamente seu próprio tempo. A ordem social se traduz em uma ordem discursiva que procura aprisionar o dissenso e impedir a contestação. O passado afirma, desse modo, as regras de uma comunicação perfeita, na qual o bem falar é sinônimo falar bem, falar bem de, falar em nome do bem.

O discurso da contestação é uma prática social que desafia a semântica e a sintaxe da ordem a uma luta discursiva na qual formas sociais de vida social antagônicas se enfrentam por meio da palavra. Mas a contestação não é um mero discurso. Ela é fundamentalmente um conjunto de práticas pré-discursivas ou não-discursivas, instituições, técnicas e formas que constituem relações sociais/relações de forças a partir das quais o discurso pode ser construído. No início era o ato e foi sobre esse ato que o discurso se constituiu. É como ação que a contestação pode comprometer as estruturas materiais sobre as quais as relações de poder lingüístico e extra-lingüístico encontram-se assentadas. Barricadas, bloqueios, ocupações, protestos e greves confiscam o direito de ir e vir das práticas sociais dominantes. Ao fazer isso a prática da contestação abala autoridades, hierarquias, poderes e dominações que estruturavam o entendimento entre os sujeitos e arromba a porta que permite a passagem do antagonismo.

A redução da contestação a uma prática exclusivamente discursiva reconduz a contestação à condição de dissenso, eliminando o radicalismo imanente de suas ações e tornando-o vulnerável a seu aprisionamento no interior da ordem. Quando o convite ao diálogo vem acompanhado da exigência do “desarmamento dos espíritos” ele não é senão uma armadilha. A identidade entre a política e o consenso estabelecida pelo discurso da ordem apela para a neutralização da política, reduzindo esta a um ato de troca lingüística por meio do qual os participantes construiriam em situações de igualdade um destino comumente aceito. Tal neutralização oculta as relações de poder extralingüísticas que estruturam essa troca de equivalentes e antecipam o resultado do destino consensualmente construído. O consenso obtido é assim um consenso forçado no qual a coerção tem lugar.

É possível questionar sem muito esforço a amplitude do consenso possível de opiniões. A teoria contratualista contemporânea abordou esse problema investigando o conjunto de proposições fundamentais a partir das quais seria possível construir um consenso fundante. Mas para tal precisou recorrer a “artifícios de representação” como o véu de ignorância proposto por John Rawls (2000) que impediria os atores de, na posição original, conhecerem sua situação, ou seja, reconhecerem as formas sociais de vida social das quais são parte. Cobertos por um véu de ignorância os indivíduos poderiam chegar a escolhas ao mesmo tempo racionais e justas a respeito dos princípios que organizariam a sociedade.

Mas o argumento do véu de ignorância não deixa de ser contraditório, uma vez que cobertos por ele os indivíduos da teoria rawlsiana processariam opções e chegariam a escolhas a partir de valores e pressupostos que não são, senão, os mesmos de uma ordem social liberal. O argumento é, assim, circular, uma vez que partindo desses valores liberais se tornaria possível chegar a uma ordem social liberal baseada nos princípios da igual liberdade, que definiria e asseguraria as liberdades básicas e um segundo princípio, que diria respeito à distribuição de riqueza e renda na sociedade e à abrangência das organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e responsabilidade.

Esses princípios podem ser contestados em si, bem como a ordem lexical estabelecida por Rawls que afirma a prioridade das liberdades iguais sobre as suficiências iguais. Mas mesmo que esse consenso imaginado fosse estabelecido apenas sobre esse conjunto muito restrito de questões cuja solução supostamente viabilizaria a vida em comum, o que aconteceria quando a imaginação cedesse lugar à realização dessa “sociedade democrática e bem-ordenada”? Quanto tempo duraria o consenso uma vez retirado o véu da ignorância e identificadas as profundas desigualdades e os radicais antagonismos que haviam sido desconsiderados pela imaginação política? Qual a possibilidade desse consenso de opiniões ser estável em situações nas quais um consenso mais abrangente sobre as formas sociais de vida social não pode ser estabelecido entre sujeitos que vivem o presente de modo tão distinto? Há sentido, então, em imaginar um consenso que se assenta sobre bases tão frágeis? E se há sentido, qual é esse?

Sem um consenso sobre essas formas de vida o consenso de opiniões é possível apenas no interior do grupo dominante, e este impõe-se a todos, contentes ou descontentes, por meio de uma violência que assume formas simbólicas ou policiais dependendo das circunstâncias e de seus objetos. Tem lugar, então uma hegemonia que se constrói a partir de um consenso limitado e de uma coerção ampliada, organizando a vida social e política de modo a expulsar o dissenso, neutralizar a contestação, bloquear a revolução. O consenso e a coerção sobre a qual a ordem social e política repousa reproduzem as condições de sua própria existência tornando-se aparentemente insuperáveis. A oposição moderada que se apresenta como representante do dissenso perante a ordem não é, senão, representante da ordem perante o dissenso. O dissenso tem sua legitimidade confiscada por um consenso limitado que se autolegitima, ao mesmo tempo em que se autodefine como fonte de toda legitimidade.

O dissenso não é reconhecido e nem mesmo ouvido ou percebido. Quando este se transforma em contestação passa a ser ouvido e percebido, mas continua não sendo reconhecido. Exige, entretanto, um nome que possa nomear aquilo que não se reconhece mas mas que é impossível desconhecer quando sua presença se impõe no território social. É a conspiração! É Blanqui! gritavam os burgueses de Paris em 1871. Sarkozy, este novo burguês da velha França, já a nomeou, ela é a racaille. O consenso é aristocrático. Ele não admite aqueles que não aceitam sua hegemonia limitada e com ela todas as distinções e instituições próprias da ordem social. Abomina seus maus modos, seu modo de ser, suas roupas, seus penteados, seu modo de falar e não sente vergonha de manifestar esse ódio de modo aberto. Para os porta-vozes dessa ordem, os que não consentem não sabem se comportar, são a gentalha, a patuléia, a escuma, a ralé.

Enquanto o dissenso estiver submetido a uma metafísica do consenso, esperando o momento de se transformar neste, o consenso limitado será insuperável. Apenas a contestação pode libertar o dissenso negando esse consenso limitado. Negar o consenso e, desse modo, recusar o presente é o objetivo da contestação. Mas esta é ainda incapaz de negar a própria negação. Como um conjunto de práticas sociais a contestação nasce no interior das contradições da velha ordem. Recusa e se debate contra essas contradições mas não consegue romper definitivamente com elas. Guarda ainda as marcas de sua origem. Marcas que se fazem mais fortes quanto mais afastada de uma alternativa a contestação se encontrar. A ordem ainda se faz presente na contestação na condição de resíduo.

Apenas quando a contestação se transforma em revolução aparece a alternativa e a negação da negação pode ter lugar. A revolução não apenas nega o presente. Ela também afirma uma nova ordem. Maquiavel já anunciava que não havia coisa “mais difícil de se fazer, mais duvidosa de se alcançar, ou mais perigosa de se manejar do que ser o introdutor de uma nova ordem” (MACHIAVELLI, 1971, p. 265). Construir uma nova ordem era tão perigoso quanto a descoberta de mares e terras desconhecidas (idem, p. 76). Negar não é fácil. Afirmar menos ainda. Mas quando o impossível deita raízes na “verdade efetiva das coisas”, é esse impossível o que deve nortear a ação política dos antagonistas. Pode, entretanto, o atual movimento estudantil passar da contestação à revolução?

II

Para passar da contestação à revolução o movimento estudantil deveria ser capaz de reconhecer sua força e seus limites. O Decreto Declaratório publicado no Diário Oficial do dia 31 de maio revogou de fato as medidas que atingiam a autonomia administrativa e financeira das universidades estaduais. O mesmo decreto matinha a Secretaria de Ensino Superior, embora retirasse do secretário os poderes sobre a administração das universidades que originalmente lhe haviam sido atribuídos. Preservada em sua forma, a Secretaria foi esvaziada em suas atribuições, fato reconhecido pelo desembargador Palma Bissom, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) ao julgar pedido de liminar contra os Decretos 51.460 e 51.461, de 2007. Embora a decisão do desembargador não reconhecesse a urgência do pedido, afirmava a inconstitucionalidade da criação da Secretaria informando uma decisão sobre o mérito da questão pelo colégio de desembargadores do TJ que poderá ser desfavorável ao governo.

A revogação de fato dos decretos do governador não representam uma derrota definitiva do projeto de reconfiguração das universidades paulistas que se expressava por meio deles. Permanecem o estrangulamento financeiro das universidades; a fragmentação do sistema estadual de pesquisa e ensino superior; a redução da universidade a um ensino pós-secundário; e os privilégios obtidos pela chamada “pesquisa operacional” na atribuição de recursos. Embora a forma institucional que esse projeto de reconfiguração assumia tenha sido derrotada, a ameaça sobre a autonomia universitária permanece latente.

Após a desocupação dos prédios públicos pelos estudantes, as reitorias da USP, Unesp e Unicamp fazem ameaças e prometem punições aos participantes. As ameaças, entretanto, ainda não se concretizaram. Elas são uma tentativa de reduzir o alcance da vitória obtida pela comunidade universitária e mudar a atual relação de forças. Mas é preciso mais do que ameaças ou do que algumas punições para alterar uma relação de forças forjada em meses de mobilização contra os decretos. Uma nova luta terá lugar contra essas punições na tentativa de impedir que elas tenham lugar. Cabe ao futuro decidir se o governo e as reitorias terão a força para cumprir o que prometem contra os estudantes. Até lá as vitórias do movimento permanecerão como tal.

Recorrendo a novas formas de luta os estudantes decretaram virtualmente um estado de emergência social. A construção de um movimento de contestação durante esse estado criou as condições para contra-atacar os decretos simultaneamente em várias frentes. O movimento que emergiu foi capaz de dar um novo significado a velhas práticas sociais. Ocupações, barricadas, greves e manifestações ganharam formas inovadoras dando vazão a uma energia criativa que rompeu com o espaço e o tempo da ordem social. A reapropriação de lugares que deveriam ser públicos pelo movimento fez com que estes ganhassem novos significados. Debaixo dos velhos espaços da burocracia universitária um novo território foi descoberto e o lento ritmo da dominação, com sua cadência burocrática, cedeu lugar ao frenesi do movimento acelerando a vida acadêmica.

O debate voltou à universidade, assim como a reflexão sobre sua crise e as alternativas existentes para superá-la. As formas ritualizadas da vida acadêmica, a polidez fingida, o consenso fictício e o respeito às hierarquias cederam lugar à contraposição viva e apaixonada de idéias e opiniões. Quando o conflito invadiu a universidade vieram à luz os diferentes e irredutíveis projetos que abriga. Manifestos e contra-manifestos, abaixo-assinados e contra-abaixo-assinados, artigos e contra-artigos invadiram o espaço virtual e revelaram alinhamentos políticos reais que existiam sob a tranqüilidade acadêmica. O passado de cada um não basta mais para definir o lugar ocupado nesses alinhamentos. É o presente reinventado pela emergência que o define.

O filósofo Paulo Arantes tem afirmado que o recente movimento foi uma “subversão pela ordem”. Segundo Arantes, os decretos de Serra teriam violado o “famoso Estado democrático de Direito” e essa violação teria provocado “um ato considerado de subversão revolucionária para colocar as coisas no seu lugar, que é um lugar conservador” (apud MACHADO, 2007). As reivindicações da comunidade universitária seriam conservadores porque teriam como propósito restabelecer o status quo ex ante. De fato, as reivindicações de assistência estudantil, contratação de professores e autonomia universitária estão muito longe de expressar a radicalização do movimento. Mas esse conservadorismo somente existiria se esse status quo fosse compatível com o presente. Nisso consiste o erro de Arantes: mesmo essas limitadas reivindicações são incompatíveis com o projeto do governo estadual.

As reivindicações dos estudantes não expressavam uma vontade de conservar e sim uma vontade de resistir. Resistir é um ato de contestação. É um ato que se contrapõe ao poder, a qualquer poder, desconhecendo sua legitimidade (ver BENSAÏD, p. 2001, 31-45). Não é necessariamente um ato positivo. Mas é um ato por meio do qual o fluxo normal da dominação, o chamado progresso, é obstaculizado. A passagem da reforma neoliberal das universidades estaduais paulistas foi impedida por esse movimento de contestação. Enquanto durar o estado de emergência decretado pelo movimento nada será como antes e a ordem anterior não será restabelecida.

A própria constituição do movimento estudantil como um movimento independente constitui um ganho importante. A autonomia afirmada libertou o movimento da tutela governamental. A União Nacional de Estudantes (UNE) e os Diretórios Centrais de Estudantes (DCEs) opuseram-se aberta ou veladamente ao movimento, motivando o repúdio. O atrelamento dessas entidades ao governo federal esvaziou sua já escassa representatividade. Assembléias e encontros estudantis adotaram resoluções contra elas contestando a legitimidade de suas diretorias. Encontros estaduais de estudantes foram realizados à revelia das tradicionais instâncias de representação e novas formas institucionais para a organização do movimento foram criadas.

Essa autonomia permitiu que o movimento estudantil se afirmasse como um ator social e político independente, agente da contestação Esgotado o ciclo de luta do início dos anos 1990 e limitado a explosões esporádicas e localizadas, o movimento estudantil havia criado forte dependência política e ideológica da mobilização de professores e funcionários. Compensava a inexistência de uma mobilização própria com a subordinação ao calendário de mobilização destes. Tratava-se, claramente, de uma subordinação e não de uma coordenação, uma vez que os estudantes não tinham forças para desenvolver um movimento próprio e autônomo. Nas recentes mobilizações o movimento estudantil reencontrou sua autonomia e afirmou uma capacidade de iniciativa própria e uma imaginação política que permitiram sua constituição como um movimento independente, dotado de sua própria força.

As assembléias, lugar no qual a democracia tomou corpo, constituíram-se na nova sede do poder estudantil. As tradicionais manobras burocráticas, os bumbos e tambores utilizados para silenciar oponentes, as palavras-de-ordem rasteiras anunciadas aos berros e as claques despolitizadas cederam lugar – espera-se que definitivamente – a um intenso debate de idéias e propostas que não impedia nenhum partido, corrente ou estudante de se manifestar. Com as conhecidas exceções prevaleceu o respeito à diferença e o empenho na construção de um forte movimento unitário que superava os desacordos sobre as táticas e os métodos de luta.

III

A esperança prometida Partido dos Trabalhadores e pelo Partido Comunista do Brasil quando chegaram ao poder se transformou para muitos, rapidamente, em desilusão. A falência política desses partidos produziu como resultado contraditório a recusa, por uma parcela do movimento, da forma-partido e da própria política. As formas dessa recusa são muitas vezes incoerentes. Às vezes assume as vestes de um neoanarquismo ou neoautonomismo que encontra seu inusitado lugar não no movimento operário, como antigamente, mas em organizações não-governamentais tuteladas pelo Estado. Outras vezes é possível vê-la caminhando ao lado do apoio a Hugo Chavez ou Fidel Castro.

Ao mesmo tempo em que expressa uma importante ruptura com os partidos da esquerda governamental, o que sem dúvida é positivo, a rejeição a todos os partidos políticos reproduz a ideologia liberal e conservadora assentada no primado do indivíduo. Essa contradição impõe ao próprio movimento a perda da perspectiva estratégica baseada na análise do todo social que apenas o partido como intelectual coletivo pode formular. O imediatismo é o primeiro corolário do apartidarismo. A perda da perspectiva estratégica condena o movimento a viver um eterno presente. Sem uma perspectiva estratégica o movimento se torna incapaz de refletir sobre si próprio. A teoria não tem nele lugar e é, até mesmo, condenada à superfluidade. Apenas a ação é justificada. Mas justificada por quê? Por quem?

Uma das características do movimento estudantil de 1968 era a afirmação da centralidade da unidade entre a teoria e prática. Na Alemanha, influenciado pela teoria da escola de Frankfurt e pelo marxismo esse movimento protagonizado pela Sozialistischen Deutschen Studentenbund (SDS) soube combinar uma aguda crítica da sociedade capitalista com uma forte mobilização social (cf. p. ex. DUTSCHKE, 1969). Experiências similares tiveram lugar na França onde as organizações trotskistas, maoístas e anarquistas cumpriram um papel de destaque (cf. BENSAÏD e WEBER, 1968). Mas o movimento atual está muito longe de ter avançado nessa direção. Sua recusa da forma-partido lhe impede de fazer isso. Afastada da teoria a prática se transforma em pragmática.

Inadvertidamente o apartidarismo reproduz a ideologia pós-moderna. Rejeitada a forma-partido, a construção de uma nova concepção de mundo total capaz de constituir uma identidade social das classes subalternas é substituída por identidades fragmentárias e particularistas formadas a partir de uma experiência social limitada. Os limites dessa experiência social são dados pela indiferença que caracteriza o indivíduo liberal perante tudo aquilo que não lhe diz respeito imediatamente e pela área reduzida sobre a qual se constitui a comunidade de interesses entre diversos indivíduos.

A contestação nasce da contradição entre as expectativas geradas pelo lento processo de expansão do ensino superior e a frustração advinda das escassas oportunidades reais de trabalho para os portadores de título superior. A contradição é exacerbada no interior da própria universidade pela clivagem existente entre as “carreiras de futuro”, os “centros e excelência”, os ‘laboratórios de pesquisa” e, agora, “a pesquisa operacional” e as chamadas humanidades nas quais a crítica que tem ali sede parece impedir o próprio futuro.

A universidade tornou-se parte do mecanismo da produção social do fracasso. A distinção entre perturbações (troubles) e questões (issues) apresentada por Wright Mills (1967, p. 8) é esclarecedora. Perturbações dizem respeito à personalidade do indivíduo, às relações deste com os outros em um espaço social restrito à intimidade do sujeito. As questões transcendem essa esfera restrita da personalidade e se afirmam em um território social no qual ocorre a interpenetração de um gigantesco número de relações interpessoais em um quadro sócio-histórico determinado. As dificuldades para os recém-formados da área de humanidades seguirem as profissões de sua escolha não são o resultado de uma perturbação individual. Trata-se de uma questão social.

A sociologia dessa questão tem feito avanços. Temos hoje uma visão mais precisa e os estudos do trabalho tem dado consistência à hipótese de que se esteja perante uma crise de reprodução social na qual as novas gerações enfrentam sérias dificuldades para manter as condições materiais de sua existência no mesmo nível das gerações anteriores. Embora os critérios de diferenciação geracional não sejam suficientes para superar uma análise em termos de classes sociais, torna-se cada vez mais importante articular critérios etários e classistas (ver CHAUVEL, 2002). A crise social é vivida de modo diferente nos vários momentos da vida e é vivida de modo particularmente intenso durante a juventude.

A expansão do ensino superior deve ser analisada como parte dessa crise de reprodução social. O número de estudantes matriculados em instituições de ensino superior públicas e privadas nunca foi tão grande. O crescimento não atinge apenas os alunos matriculados em instituições particulares, como também aqueles que encontram lugar nas seletivas universidades públicas. Mas contraditoriamente essa expansão caminha lado-a-lado com a desvalorização do diploma universitário e a frustração das expectativas da juventude.

O sistema universitário brasileiro é extremamente diferenciado e marcado por profundas clivagens. Há, em primeiro lugar, uma clara diferenciação entre as instituições estatais (federais e estaduais), que concentram a quase totalidade das atividades de pesquisa e extensão, e as instituições privadas. Em segundo lugar há a diferenciação no interior das instituições estatais entre aquelas que abrigam os chamados “centros de excelência” e as demais. Em terceiro lugar há a distinção que pode ser encontrada no interior das instituições de excelência entre as faculdades, institutos, centros de pesquisa e laboratórios voltados para a “pesquisa operacional” e os outros.

Devido a essas clivagens o título superior é valorizado diferentemente pelo mercado de trabalho. Em algumas áreas a saturação de diplomados é evidente. Nos cursos de comunicação social, arquitetura e nas chamadas humanidades, as oportunidades profissionais capazes de cumprir a promessa de ascensão social encontram-se bloqueadas ao grande número. Já não basta um diploma de bacharel obtido em uma instituição de excelência. Este precisa ser complementado por cursos de pós-graduação latu ou strictu senso. O crescimento vertiginoso dos cursos de pós-graduação no Brasil vem a atender essa demanda. Os sacrifícios realizados pelas famílias para manterem seus filhos no sistema de ensino superior são multiplicados. Aos quatro ou cinco anos do bacharelado é necessário acrescentar pelo menos dois anos de mestrado e outros quatro para a obtenção do título de Doutor.

Os limites do movimento estudantil são, também, os limites de sua base social. Este encontra-se reduzido às universidades estatais e nestas predomina a mobilização dos cursos da área das ciências humanas. Uma sociologia e uma etnografia da contestação poderão contribuir para a compreensão desse fenômeno. Mas enquanto isso é possível antecipar a hipótese de que o território no qual essa contestação é mais intensa coincide com aquele no qual predominam os estudantes mais pobres e as carreiras nas quais o mercado de trabalho oferecem menos possibilidades de colocação profissional. A base social desse movimento reflete desse modo as clivagens que se verificam no interior da própria universidade.

O impacto do movimento nos meios de comunicação foi grande, dividindo a opinião pública, mas esse impacto foi superior a sua capacidade efetiva de transformação social. No calor dos acontecimentos não faltaram aqueles que num arroubo neomarcusiano enxergaram nos estudantes uma força social homogênea capaz de emancipar a universidade mediante uma nova modalidade de poder local. Mas a dificuldade que esse movimento encontrou para sair da universidade e ganhar literalmente as ruas sinaliza o quão distante de realizar esse sonho se encontrava.

A ocupação da reitoria da USP foi até o momento a ação mais importante desse novo movimento. Foi por meio dela que o estado de emergência social foi decretado. É importante, entretanto, não confundir o evento com o movimento, a tática com a estratégia, a forma com o conteúdo. Ocupações, barricadas, atos de rua e greves são importantes formas e táticas de mobilização, que se revelam mais ou menos apropriadas de acordo com as circunstâncias. As formas mais radicais de luta não são definidas a priori. Apenas as formas mais eficazes em um dado contexto é que podem ser consideradas as mais radicais. O fetichismo do evento, da tática e da forma parece ser uma constante em momentos de radicalização estudantil. Trata-se de uma tentativa desesperada de cruzar o fosso que separa o programa de mudança social abraçado pelos estudantes radicalizados e as condições efetivas de transformação em um contexto no qual não tem ‑ e não terão ‑ as condições para realizar sozinhos esse programa. Analisando o movimento de 1968, Ernest Mandel afirmou:

“Na medida em que os estudantes críticos não encontram possibilidade de uma oposição radical e de um afrontamento no interior dessas estruturas, tentam chegar a isso fora dos partidos, do parlamento e dos mass media manipulados. Mas como não têm nem a massa nem o peso social necessários para transformar por si mesmos a sociedade, a sua atividade limita-se a imitar uma revolução social que dê um exemplo que se reduz a uma espécie de espetáculo. Pa alguns revolucionários estudantis, esse espetáculo, de meio torna-se um fim e si.” (MANDEL, 1979, p. 46)

O evento é a espetacularização do movimento, mas não é o próprio movimento. Ele é um acontecimento sem passado, nem futuro, que encontra seu lugar em uma situação sem ser definido ou previsto por meio dela (BADIOU, 1996). Resumido a um instante o evento torna-se indiferente à própria história. Considerado como um ato único e fundante ele renega a experiência acumulada pelo passado e demonstra despreocupação com suas conseqüências futuras. Seu objetivo exclusivo passa a ser “chamar a atenção”. As flash mobs que ocorreram nos últimos meses são a manifestação caricatural do evento. Qual o sentido ou a eficácia de interrpomper o trânsito de uma importante avenida durante cinco minutos? Puro espetáculo elas não têm outra finalidade senão transformar-se em notícia.

Quando o movimento se dissolve no evento perde sua capacidade de transformação efetiva, de traspassar a história e sua própria essência. No instante não há deslocamento entre dois pontos, não há movimento. O evento é a forma pós-moderna da política. Fora da história o evento rejeita as narrativas que poderiam ajudar a sua compreensão. Em seu sentido espetacular ele se oferece imediatamente aos sentidos, recusando toda forma de compreensão sob o pretexto de que não haveria mais nada além daquilo que já havia sido visto. A forma é igual ao conteúdo, tornando toda ciência inútil. A histoire événementielle, aquela que assumia como objeto a cadeia de acontecimentos episódicos e fortuitos que se manifestavam na curta duração retorna triunfante depois de ter sido submetida à crítica demolidora de Fernand Braudel (1968). Recusando a história ele recusa a memória de si. Sem a memória ele perde o ressentimento social que se alimenta dela; perde o desejo de vingança dos antepassados escravizados (BENJAMIN, 1994, p. 229).

Não é a penas a compreensão profunda que o evento rejeita. Ele recusa, também, as narrativas que poderiam lhe dar um sentido. Ele leva a sério a afirmação pós-moderna do fim das utopias. O u-topos, aquilo que não tem lugar no presente, não faz o menor sentido quando o presente é o único tempo no qual a o evento se conjuga. Ele é o próprio presente em sua forma espetacular. Quando o evento não é mais presente ele não é mais nada. Cabe perguntar se a forma pós-moderna da política é ainda política. Presa ao acontecimento imediato, indiferente à própria história, a política se reduz à pura vontade de poucos. Sem partido, sem programa, sem estratégia, sem utopia; espetacular, contingente, ocasional, imediata. Explosão instantânea que não deixa senão cinzas. É possível nesses termos falar de um movimento político? E se for, em que se distinguiria da mera ação corporativa dos grupos de interesses?

IV

O movimento dos estudantes foi muito mais do que seus eventos poderiam dar a entender. Tivesse ficado preso a sua forma ou a sua tática não teria sido decretado um estado de emergência social. Mas a tentação do evento permanece. Sua capacidade miraculosa de ocupar a mídia pode fascinar espíritos avessos à lenta impaciência que o movimento exige. Reconhecer a força desse movimento e seus limites cria as condições para pensar o futuro. A desocupação da reitoria da USP e da Diretoria Acadêmica da Unicamp pode ter sido para alguns o fim do espetáculo, mas certamente não foi o fim de um movimento de contestação nem do estado de emergência social por ele criado. A velha pergunta de Lenin ainda ecoa: e agora, o que fazer? Ou ainda: após as desocupações há o que fazer? Dois desafios podem ser colocados para esse novo movimento.

O primeiro deles diz respeito à ampliação de sua base social. A consolidação desse novo movimento estudantil exige em primeiro lugar sua extensão para o conjunto das universidades estatais; em segundo, sua transformação em um movimento de todos os estudantes universitários, abarcando os milhões que se encontram nas universidades particulares; e, em terceiro lugar sua unidade com as dezenas de milhões de jovens secundaristas em um movimento unificado da juventude estudantil. Construir esse novo movimento exige ir além das perspectivas localistas e das reivindicações corporativistas estimuladas pela estrutura tradicional de representação dos estudantes e apresentar um programa abrangente de defesa de uma universidade pública, gratuita, autônoma, democrática e de qualidade. Exige também construir uma nova organização nacional do movimento estudantil, presente nas escolas, faculdades e universidades, capaz de coordenar efetivamente suas lutas.

O segundo diz respeito à necessidade de resgatar a estratégia. O fim da política exige a realização da própria política. Mas para realizar-se a política deve reencontrar sua dimensão estratégica, negando sua forma atual. Quando o movimento é tudo e o objetivo final não é nada os velhos reformismos parlamentar e sindical afirmam sua força e a política se confunde com a briga de gangues por um botim. Os partidos da esquerda governista (PT e PCdoB) esvaziaram nos últimos anos o conteúdo estratégico de suas práticas. Seus programas partidários não passam de um conjunto de propostas desconexas indexadas pelas pesquisas de opinião. Seus programas de governo são uma mistura de austeridade fiscal e políticas assistencialistas na qual predomina o sabor do primeiro ingrediente. A simples distinção ente programa de partido e programa de governo, anunciada com ingenuidade fingida, denuncia o caráter desses partidos. Resgatar a estratégia significa romper com o eleitoralismo e o reformismo característico da esquerda governista e recolocar o socialismo e os meios de se chegar a ele em discussão. Mas resgatar a estratégia implica reencontrar a forma-partido reconhecendo nela a possibilidade mais efetiva de elaboração de uma concepção de mundo total e de uma nova forma civilizatória.

Referências bibliográficas:

BADIOU, A. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

BEJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232. (Obras escolhidas, v. I)

BENSAID, Daniel e WEBER, Henri. Mai 68: une répétition générale. Paris: Maspero, 1968.

BENSAID, Daniel. Résistances: essai de taupologie générale. Paris: Fayard, 2001.

BRAUDEL, Fernand. La história y las ciencias sociales. Madri: Alianza, 1968.

CHAUVEL, Louis. Classes e gerações: a insuficiência das hipóteses da teoria do fim das classes sociais. Crítica Marxista, São Paulo, n. 15, p. 57-70, 2002.

DUTSCHKE, Rudi. Ecrits politiques. Paris: Christian Bourgois, 1968

MACHADO, Uirá. Invasão na USP revela um desejo paradoxal por ordem. Folha de S. Paulo, 24 jun. 2007, p. A16.

MANDEL, Ernest. Os estudantes, os intelectuais e a luta de classes. Lisboa: Antídoto, 1979.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: 34, 1996.

RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000.

[Fonte: Blog de Alvaro Bianchi (20070917)]

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