Carta aos Estudantes Participantes do 50º Congresso da UNE

CMI — Centro de Mídia Independente, 25/06/2007 às 14:36
Por Otávio Luiz Machado1

Como um dos estudiosos do tema movimento estudantil, no momento do 50º Congresso da UNE não poderíamos deixar de manifestar a nossa satisfação pela ocorrência do evento de uma grandiosa e vitoriosa entidade, a histórica União Nacional dos Estudantes (UNE).

Por outro lado, também não poderíamos deixar de manifestar a nossa preocupação com a atual reconstituição histórica da entidade feita por um projeto cultural amplamente financiado com recursos públicos.
Desde o ano de 2005 quando, na condição de pesquisador, pudemos compreender um pouco do que seria o chamado Projeto Memória do Movimento Estudantil (MME) ? uma parceria entre a Fundação Roberto Marinho (leia-se Rede Globo) e a UNE ?, que assumimos uma postura contrária aos acordos estabelecidos para a feitura de tal atividade.

A convite do próprio projeto, em setembro de 2005, pudemos participar de dois eventos: 1) "Ato" na cidade de Olinda-PE; 2) Workshop do MME no Rio de Janeiro-RJ. As nossas observações quanto aos dois eventos não foram devidamente positivas, porque compreendemos que o projeto sempre pecou pela falta de transparência, de diálogo com os estudiosos e de uma instrumentalização da entidade em torno da produção de sua própria história. No primeiro evento sequer foi tocada a questão da abertura dos arquivos da ditadura; no segundo, sequer foi devidamente explicada a relevância do projeto para a construção do conhecimento histórico, assim como a importância da parceira Globo em tal trabalho.

Algumas das nossas posições sobre o Projeto da UNE/Fundação Roberto Marinho podem ser lidas no artigo "A reconstituição histórica dos movimentos estudantis: um debate sobre esquecimentos, celebrações, reflexões, comemorações e contra-comemorações" no seguinte sítio:

http://www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria/download/CadernosDeHistoria-03-12-Dossie.pdf

As leituras de todos os textos produzidos pelo projeto MME até o momento também deixam intocáveis as nossas primeiras impressões acerca da posição assumida pelo projeto desde que o conhecemos, que é o de criar uma imagem da UNE não se apoiando nos fatos, mas na imagem que querem criar sobre a entidade, a partir de uma perspectiva de quem a comanda. Algo muito conveniente para quem está no poder. Cito alguns exemplos:

  1. O mais conveniente no momento é divulgar que a entidade foi criada em 1937, o que significa estar chegando ainda em 2007 aos seus 70 anos, mesmo que o próprio projeto Memória do Movimento Estudantil (MME) esteja apontando como data efetiva da criação da entidade o ano de 1938. Mas tais atitudes em nada comprometem o projeto? Ou o que vale mesmo é aliar aos interesses da própria entidade na atualidade? Esconder documentos que arranham a imagem da entidade e de sua parceira também não teriam problemas? A história precisa ser escrita de acordo com os interesses da entidade no momento?
  2. Embora diferentemente do que erroneamente muito o pessoal que está envolvido com a história da UNE vem dizendo, o movimento estudantil tem uma história muito ligada às universidades e à educação superior. A existência de todo um ambiente de debate nas universidades em décadas passadas e a importância da formação política do estudante no interior das entidades estudantis universitárias foram fatores essenciais para o surgimento, a expansão e a relevância do movimento estudantil. Nos anos 1950 e 1960, sobretudo, o ensino superior estava de alguma forma integrado a um projeto de nação. A educação tinha uma missão mestra, que era a de construir uma nação. Ou mesmo a educação para a promoção do desenvolvimento econômico e para a construção de um desenvolvimento social para toda a população brasileira. Era uma época em que investir em educação era investir num projeto de país. Mas na história promovida pela UNE somem os estudantes e as universidades. Tal abordagem também reflete a atual posição da entidade ao ficar tão distante da educação e das universidades?
  3. É muito sério que a direção da UNE esteja se desligando de prestar esclarecimentos sobre as autorizações de acesso à pouca documentação que recolheu. Tal omissão nos faz concluir que a autorização final será dada pela própria Fundação Roberto Marinho, que possui direitos sobre a documentação.
  4. O material em forma de livro produzido pelo MME intitulado "Memória do Movimento Estudantil" (Editora Museu da República) sequer é encontrado nas bibliotecas universitárias do país. O que esperar de um projeto beneficiado com cerca de um milhão e quinhentos mil reais (na primeira parcela) que não pode enviar pelo menos um exemplar de um livro gratuitamente às principais universidades? O que faremos? Teremos acesso aos resultados do projeto Memória do Movimento Estudantil apenas pela televisão? E em programas pagos com muito dinheiro público novamente pelos patrocinadores? E em programas idealizados, produzidos, com participação de profissionais e difundido por pessoas do mesmo Grupo (Empresa)? E que são até o momento os reais beneficiários? E que depois de passar "gratuitamente" aos brasileiros pela televisão, os interessados ainda poderão adquirir os "produtos" pela mesma editora, produtora, distribuidora e divulgadora aumentando assim os lucros do mesmo Grupo? A educação já se tornou uma mercadoria qualquer. A cultura universitária também seguirá o mesmo caminho?

Mas o importante agora é que algumas teses que serão apresentadas no 50º Congresso da UNE dão conta da séria questão que envolve a história da UNE, que é de responsabilidade de todos os estudantes do país. Como sugestão a todos os participantes, saliento que é fundamental o debate sobre a memória do movimento estudantil, inclusive sobre a realização de um trabalho efetivamente sério para a reconstituição da história da UNE em todos os seus aspectos. Uma nova análise sobre o contrato feito pela UNE e a Fundação Roberto Marinho poderia até ser feita no 50º Congresso, sobretudo a possibilidade de sua realização sob outras bases e acordos.

No momento estamos dispostos a debater tal tema em qualquer instância, inclusive em comissões de direitos humanos no exterior, sobretudo para denunciar o que está sendo feito em tais assuntos por grupos monopolizadores, pois tais questões agridem o ser humano, a inteligência humana, a expressão individual e coletiva de um povo e a memória de uma nação.

Não queremos que nossos filhos tenham conhecimentos sobre a história do movimento estudantil como àqueles que nós tivemos desde as primeiras letras acerca da Guerra do Paraguai, da escravidão, da Guerra de Canudos, das ditaduras brasileiras etc.

Um novo livro didático está sendo montado no momento atual. É dever de quem fez e faz a história reescrevê-la de outras formas, tanto livre da censura, como acima da construção de interesses empresariais e comerciais.
Mas a direção da UNE tem pressa de entregá-lo à sociedade. Mais uma vez a antecipação das coisas faz-se necessária, pois os interesses imediatos falam mais alto.

Um primeiro ponto: a antecipação da data de fundação da própria entidade em um ano faz parte do Projeto IMEDIATO. A arrecadação de muita grana precisa estar bem justificada, não é?

Um segundo ponto: a antecipação da ida do Presidente da UNE ao Presidente da República também faz parte do Projeto IMEDIATO. Na iminência da chegada de um pouco mais de vastos recursos públicos não se pode vacilar. A subserviência ao poder central também reflete a atitude da elite UNE ao ir negociar as reivindicações dos estudantes antes da realização das manifestações do dia 06 de junho.

Um terceiro ponto: a pressa na construção de um novo prédio da UNE na Praia do Flamengo (Rio de Janeiro-RJ) também faz parte da antecipação visando também os interesses do Projeto IMEDIATO. É importante obviamente a construção da sede da UNE naquele local. Mas antes de tudo, a direção da UNE deveria saber valorizar a luta daqueles estudantes que viveram naquele espaço. É preciso lutar por uma reforma universitária e não uma simples reformulação na educação superior. É preciso ir constantemente às ruas e dizer que muitos estudantes sequer possuem condições de estudar devido a uma política de assistência estudantil insatisfatória. É preciso utilizar o terreno da antiga entidade antes da construção do prédio da UNE para o debate sobre a história da entidade, para a realização de exposições fotográficas críticas, para a apresentação dos principais líderes que lutaram pela UNE de forma autêntica e combativa. É preciso fazer um atuante movimento estudantil antes de tudo.

Mas o que vemos é a história da UNE ter sido um simples pretexto de um Projeto Imediato da direção da UNE. Já vi com meus próprios olhos como as pessoas que estão envolvidas no Projeto Imediato tratam os antigos líderes. São apenas usados para uma figuração. A documentação sobre a entidade é um mero pretexto para se arrecadar recursos para o Projeto Imediato.

Mas as promessas de apoio financeiro à entidade está estipulada em milhões de reais. E tem afetado a forma de agir da entidade, como expusemos acima. Faz parte de um jogo empresarial-financeiro. Os protestos no MacDonalds contra a presença do imperialista Presidente Bush vem de gente da mesma entidade que permite à poderosa Fundação Roberto Marinho (leia-se Rede Globo) adquirir direitos sobre os documentos do movimento estudantil brasileiro. Tais atitudes são apenas comparadas às empresas que querem ter altas taxas de lucro para aumentarem os seus negócios. A questão financeira pode ser uma das possíveis explicações daquilo que envolve a memória do movimento estudantil nos ditos "projetos culturais". O dinheiro é a razão da existência e da ação.

Como forma de levantar um debate sobre o tema da história dos estudantes brasileiros, cremos que aqui estamos cumprindo o nosso compromisso de cidadão e de pesquisador. O imediatismo da elite da UNE atende apenas os interesses dos que lá estão. Não atende aos interesses dos estudantes e muito menos da sociedade brasileira. É preciso primeiro fazer para depois aparecer. Mas a antecipação tem sido a prática corriqueira dos que detém a direção da UNE, como argumentamos acima. Mas num bom debate tudo pode ser resolvido. Um bom Congresso a vocês.

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