Um réquiem para os ditadores e seus filhotes

Contraponto, setembro 20071
EDITORIAL

Apenas uma ditadura militar retrógrada, violenta, anacrônica e obscurantista poderia ter ordenado a invasão da universidade por soldados armados, como aconteceu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em setembro de 1977. Unicamente generais arrogantes, habituados a tratar como criminosos aqueles que manifestam opiniões divergentes, autorizariam a mobilização da tropa de choque e o uso de bombas contra estudantes armados unicamente de consciência crítica.

Certo?

Errado.

O governo democrático de José Serra, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1964, ordenou a invasão militar da USP — mais precisamente, da Faculdade de Direito São Francisco —, três décadas depois que os macacos amestrados e fardados do coronel Erasmo Dias promoveram a barbárie nas dependências da PUC. E — justiça seja feita — a USP não foi a primeira a sofrer os efeitos da repressão democrática de José Serra. Antes dela, também o campus da Unesp em Araraquara foi agredido pela PM.

A invasão da universidade por tropas tem muito a revelar sobre a natureza do Estado brasileiro. Trata-se de um Estado autoritário, cujas instituições são incompatíveis com a existência de uma sociedade civil dinâmica, complexa, contestadora. Basta, para demonstrá-lo, uma constatação óbvia: fosse o Estado brasileiro tão ágil para responder ao quadro de catástrofe social diariamente sentido pela população pobre como é para reprimir os movimentos sociais, incluindo o estudantil, viveríamos todos num bucólico paraíso social.

Iludem-se os que acreditam ser o Estado brasileiro uma democracia. Não poderia, de fato, haver maior piada. Democracia que condena os miseráveis a morrer em filas intermináveis diante de hospitais públicos quebrados, mas que arma e mobiliza imediatamente os milicos contra aqueles que querem mudar o país. Democracia que preserva a desigualdade extrema e garante impunidade aos corruptos, mas condena a anos de prisão uma senhora que "rouba" um litro de leite para dar ao filho faminto.

A invasão da universidade por tropas tem muito a revelar sobre a natureza dos governantes brasileiros. Salvo raras — raríssimas! — e honrosas exceções, são grupos que, para se manter no poder, fazem todo tipo de acordo e aceitam quaisquer compromissos, vendem a alma a Belzebu e a quem mais der trinta moedas. Rifam os próprios princípios, se algum dia os tiveram, imolam a consciência no altar da ambição.

E nem é de hoje, sabemos, que isso acontece na história do país: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantar os poderes nas mãos dos maus…", denunciava, a propósito, o tribuno baiano Rui Barbosa.

Mas há diferenças entre os atuais governos democráticos e a antiga ditadura militar. Enquanto os generais diziam que tudo era proibido, os atuais governantes afirmam tudo ser permitido… exceto a luta pela real democratização do Brasil. Enquanto uns são, ao menos, explícitos e transparentes, outros se fantasiam daquilo que estão longe de ser.

O jogo de fantasias produz seus efeitos: enquanto os militares eram criticados por todos os que se afirmavam democráticos, os seus sucessores travestidos de democráticos recebem apoio da mídia e até de reitores, contra os estudantes. E ambos, no fim, utilizam as mesmas bombas e os mesmos tanques contra o mesmo inimigo — o povo brasileiro.

Arrogante e pretensioso, o governador José Serra, aparentemente, desconsidera algo que o ex-presidente da UNE José Serra tinha obrigação de saber: nunca, na história universal, as demonstrações de força bruta prevaleceram sobre os argumentos da razão. O governador parece ter levado a sério a recomendação do guru de seu partido quanto à conveniência de cultivar a amnésia para quem quiser galgar degraus na carreira política.

Mas nós cultivamos a memória — esse implacável tribunal dos tiranos. Fazemos da memória o alimento de nossa luta, que não esmoreceu há três décadas e que tampouco se deterá frente aos milicos de hoje. A luta vai continuar, precisamente porque democracia não há. Ela vai manter todo o vigor, ao passo que José Serra, em pouco tempo, não passará de um episódio tragicômico da vida pública nacional, como já hoje é o caso de um certo coronel Erasmo Dias.

A ambos, obscuras criaturas do Estado Frankenstein brasileiro, dedicamos, por misericórdia, o nosso mais profundo e sentido epitáfio: que descansem em paz.

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