Morte de estudante despertou a Igreja

JC Online, 07 de junho de 1998
Entrevistado: Kenneth Serbin
Entrevistador: Luís Eblak

O historiador Kenneth Serbin defende a tese de que a morte do estudante da USP Alexandre Vannucchi Leme, há 25 anos, despertou a Igreja para a luta pública pelos direitos humanos no Brasil. Antes disso, a Igreja já lutava por justiça social, mas foi com a morte do estudante e guerrilheiro da ALN (Ação Libertadora Nacional) que os religiosos se colocaram publicamente contra a tortura.

"Prova disso teria sido a missa de sétimo dia da morte de Vannucchi, feita como um protesto à tortura. Serbin também defende que, mais que a morte do jornalista Wladimir Herzog, em 75, foi a de Alexandre que despertou a esquerda.

"Professor assistente do departamento de história da Universidade San Diego (EUA), Serbin prepara o lançamento, em seu país, do livro "Justiça Social ou Subversão? — Os Diálogos Secretos dos Bispos e Generais Brasileiros". A obra trata das relações entre Igreja e Estado durante o Governo do presidente Médici (1969-74), e a morte de Alexandre Vannucchi ocupará um capítulo da obra. Leia a seguir a entrevista.

Luís EblakO senhor defende a idéia de que a missa de sétimo dia da morte do Alexandre, celebrada pelo então arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, teria sido um marco no enfrentamento entre a Igreja Católica e o Estado.

Kenneth Serbin — Sim. Há vários pontos para se levar em conta a esse respeito. Todo mundo fala do caso da morte do jornalista Wladimir Herzog como sendo o grande despertar da oposição. Mas dois anos e meio antes disso, o cardeal d. Paulo havia rezado uma missa de protesto à violência, durante a qual ele criticara o regime militar, o fato de haver desaparecidos, presos políticos. Quero dizer, nós temos que rever toda a história dos anos 70 no que diz respeito à oposição e ao regime militar. Todos apontam para 75, mas antes disso já houvera uma reação. Em segundo lugar, a Igreja é o grande líder dos movimentos pelos direitos humanos no Brasil. Eu acredito que a instituição mais responsável pela introdução da idéia dos direitos humanos no Brasil é a Igreja Católica. E é justamente em 73 que a Igreja está comemorando os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU. É durante esta campanha que o Alexandre morre. É preciso lembrar também que poucas semanas depois do fato, d. Paulo foi nomeado cardeal pelo papa Paulo 6. Então nós temos uma conjuntura de várias coisas: tortura, d. Paulo chegando a cardeal, os 25 anos da declaração… No meio disso, o Alexandre morre. A Igreja já havia começado a defender os direitos humanos, mas ela defendia só no papel, pois ela fazia só documentos. Por exemplo, em julho de 72, d. Paulo e outros bispos paulistas tiveram uma reunião em Brodósqui. Nesse documento, eles fizeram duras críticas à tortura. O maior responsável por esse documento foi d. Paulo. Esse documento foi um marco na mudança de discurso dos bispos. Isto quase um ano antes da morte de Alexandre. Mas era só um documento. Quem lia documentos? A população não lia, pois a censura bloqueava. E então a defesa dos direitos humanos passa do papel para a ação com a morte do Alexandre. Estou cada vez mais convicto de que o movimento pelos direitos humanos no Brasil pós-guerra nasce com essa missa. Antes, houve outros momentos de lutas por direitos, como o da abolição da escravidão, mas o sentido da luta pelos direitos humanos era outro, não como é concebido hoje.

EblakAntes da missa, em novembro de 69, os frades dominicanos foram presos pelo envolvimento com a ALN. Antes disso ainda, em outubro de 69, houve a prisão e tortura da madre Maurina Borges da Silveira, em Ribeirão Preto, o que originou a excomunhão de dois delegados acusados de tortura. O senhor não acha que desde 69 a Igreja já tinha uma postura crítica?

Serbin — Eu não sei até que ponto o caso da madre Maurina teve repercussão no Brasil. E depois, em 70, ela sai do país… Foi um caso relevante para a Igreja naquele momento, sem dúvida, mas eu não vejo esse caso como sendo tão importante… Agora, sobre o caso dos dominicanos, acho que há muita história ainda para ser contada. Temos o livro do Frei Betto ("Batismo de Sangue"), temos o do Jacob Gorender ("Combate nas Trevas"). Esses livros se contradizem. Então, falta ainda um livro sobre os dominicanos. A Igreja, por exemplo, nunca se colocou ao lado da luta armada. Nunca aceitaria isso. E eu digo Igreja me referindo à hierarquia da instituição. Por exemplo, no Brasil, não tem padres guerrilheiros, tem um ou outro, como o padre Alípio, em meados dos anos 60. Mas no Brasil não é como em outros países, como foi na Colômbia, com Camilo Torres, morto como guerrilheiro no final dos anos 60. No Chile, houve padres lutando pelo socialismo. Mas no Brasil isso não ocorreu.

EblakO sr. pesquisa também, em seu livro, sobre a Comissão Bipartite Igreja-Militares, ou seja, encontros entre bispos e militares do alto escalão.

Serbin — Estas reuniões eram sistemáticas. De novembro de 70 até agosto de 74, estes bispos se reuniam a cada dois ou três meses, no Rio de Janeiro, com o general Muricy (Antônio Carlos da Silva Muricy), que chefiava o que se chamava de grupo da situação. Além dele, tinha gente do Cieps (Centro de Informações do Exército), do SNI e outros militares. Do outro lado, havia o chamado grupo religioso, do qual faziam parte alguns nomes: como organizador, Cândido Mendes, havia d. Eugênio, d. Aloísio e d. Ivo. Nessas reuniões, eles discutiam três assuntos. Primeiro, no início da bipartite, como estabelecer uma colaboração entre a Igreja e o Estado para o desenvolvimento sócioeconômico do Brasil. Este é um fato muito importante para a historiografia, pois, em todos os estudos sobre aquele período, dá a impressão de que a Igreja não colaborava e muito menos dialogava com os militares. Assim, a bipartite traz à tona esse assunto. Isso muda nossa visão da igreja. Isso é quase inacreditável, pois como a Igreja que naquele momento está criando a teologia da libertação, está começando as comunidades de base e iniciando protestos pelos direitos humanos, como é que a Igreja vai dialogar com militar? Em segundo lugar, discutiam casos específicos sobre atritos entre Igreja e Estado. Num momento que foi o das comemorações dos 150 anos da Independência do Brasil, a Igreja queria celebrar uma missa no monumento do Ipiranga e os militares também. Os generais não permitiram, e a Igreja acabou celebrando a missa na Catedral da Sé. Eles evitaram conflitos maiores entre Estado e Igreja. E, ao evitar conflitos maiores, eles impediram que a situação piorasse no Brasil, não deixaram que houvesse mais repressão e até mais mortes. O terceiro aspecto da bipartite, e talvez o mais diferente, diz respeito às discussões sobre os casos de direitos humanos. O caso mais importante foi o de Alexandre Vannucchi Leme. O caso dele foi discutido três vezes na bipartite.


Ver Também:
Anatomy of a Death: Repression, Human Rights and the Case of Alexandre Vannucchi Leme in Authoritarian Brazil, texto de Kenneth P. Serbin publicado em 1998 pela J. Lat. Amer. Stud. 30, 1-33 (Cambridge University Press).

Unless otherwise stated, the content of this page is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 License