Ronaldo Mouth Queiroz
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Ronaldo Mouth Queiroz estudava Geologia na USP e era um dos raros quadros remanescentes das mobilizações de 1968 que se manteve atuando legalmente nas instâncias estudantis do difícil período entre 1969 e 1972. Dirigiu o DCE da USP a partir de 1970, quando o Movimento Estudantil não podia mais realizar grandes mobilizações abertas, por força do terror repressivo. Ainda assim, trabalhou para manter uma articulação básica entre os Diretórios e Centros Acadêmicos, preparando publicações, organizando campanhas unificadas, apresentações artísticas e, principalmente, a recepção conjunta aos calouros de cada ano, trocando o trote tradicional por debates políticos e culturais.

Desde a infância, destacou-se por seu desempenho nos estudos e já aos 13 anos trabalhava em casa, fiscalizando para uma empresa as propagandas de rádio. Residia a 30 km da USP e ainda dava aulas à noite, num curso pré-vestibular. Quando morreu, Ronaldo era o responsável pela estruturação do trabalho da ALN junto ao Movimento Estudantil e movimentos sociais, mantendo vínculos com essa organização clandestina desde 1970. Ex-presos políticos consideram de baixa credibilidade a informação contida no “Livro Negro do Terrorismo no Brasil”, escrito por agentes do CIE durante o mandato ministerial do general Leônidas Pires de Vasconcelos, de que Ronaldo teria participado do Comando Aurora Maria Nascimento Furtado, responsável pela execução, em 21/02/1973, no bairro da Mooca, o dono do restaurante que teria provocado a morte de três militantes da ALN em 1972.

A partir do trabalho do ex-militante e agente policial “Jota”, o médico João Henrique de Carvalho, infiltrado na ALN em 1972, Queiroz passou a ter seus passos vigiados pelo DOI-CODI/SP. Foi morto a tiros no dia 06/04/1973, num ponto de ônibus da avenida Angélica, em São Paulo, por agentes daquele órgão de segurança do regime militar. Com base nas informações coletadas na época, os agentes nem chegaram a dar voz de prisão e atiraram à queima roupa assim que o reconheceram. No entanto, a versão oficial, publicada no dia seguinte, foi de que Ronaldo teria resistido à prisão, sendo morto em tiroteio. Essa versão, que já era questionada pela análise dos documentos oficiais, foi definitivamente derrubada por uma testemunha ocular localizada por Luiz Francisco Carvalho Filho, relator do processo na CEMDP.

O corpo de Queiroz deu entrada no necrotério às 8h do dia 06/04/1973, enquanto a requisição do IML registra o horário do óbito como tendo sido às 7h45, sendo impossível num horário de rush o deslocamento entre os dois pontos em 15 minutos. O laudo de Isaac Abramovitc e Orlando Brandão descreve dois tiros, na face anterior do hemitórax esquerdo e no mento, a um centímetro do lábio inferior, tiro este bastante incomum. Relatório localizado no DOPS/SP, assinado pelo então coronel Flávio Hugo Lima da Rocha, chefe da 2ª seção do II Exército, feito 20 dias depois dos fatos, confirma que Queiroz estava sob vigilância, ao afirmar que teriam conseguido localizar sua casa, um quarto de pensão na rua Sergipe, 303, a partir de investigações nas proximidades. Foram anexadas pelo relator reportagens de 07/04/1973 dos jornais Folha de S. Paulo, Folha da Tarde e O Estado de São Paulo, além do depoimento da testemunha localizada por ele.

Luiz Francisco Carvalho Filho também procurou por telefone o médico João Henrique Ferreira de Carvalho, o “Jota”, que se recusou a depor. No entanto, o ex-agente do DOI-CODI/SP Marival Chaves do Canto, entrevistado para uma reportagem que a Veja publicou na edição de 18/11/1992, afirmou que a delação do médico João Henrique de Carvalho tinha possibilitado a eliminação de pelo menos umas vinte pessoas, atribuindo a ele a morte de todos os dirigentes da ALN a partir de 1973.

Essa reportagem trouxe duas referências diretas à morte de Queiroz:
“Em março de 1973, por exemplo, três integrantes da organização foram fuzilados no bairro da Penha em São Paulo. Um deles fora contatado por Jota dias antes, e a partir de então uma equipe do DOI não perdeu seu rastro. O mesmo aconteceu com o estudante Ronaldo Mouth Queiroz, conhecido como ‘Papa’ na ALN, morto a tiros de metralhadora num ponto de ônibus na av. Angélica. Primeiro, investiu junto a um agrupamento da organização na Faculdade de Geologia da USP, onde estudava Alexandre Vannucchi Leme, preso e morto em março de 1973. Na mesma escola estudava Queiroz, que antes de ser assassinado lhe abriu as portas da ALN em outra faculdade, a Medicina da USP. Numa ocasião, sempre disfarçado de militante Jair, o agente Jota, procurou um estudante da Medicina, Jurandir Duarte Godoy, o ’Romeu’: que lhe fora apresentado por Queiroz”.

A testemunha localizada pelo relator declarou, 23 anos depois dos fatos, o que tinha presenciado no ponto de ônibus onde Queiroz foi morto. Seu relato corresponde claramente a uma execução. Viu quando três homens desceram de uma Veraneio C-14 e dispararam contra o rapaz que estava encostado na parede. O primeiro tiro o derrubou e o segundo foi disparado quando já estava caído. Viu ainda que o mesmo homem que atirou colocou uma arma de fogo nas mãos do corpo inerte e outra em sua cintura. E que, ante protestos de populares, um cidadão que reclamava foi preso e levado na viatura.

O relator contestou a versão oficial, afirmando que “sempre existiu o sentimento de que ela é falsa: pelos registros oficiais, o estudante deu entrada no necrotério apenas 15min depois de ser atingido; a requisição do exame foi preenchida com seu nome verdadeiro, embora a imprensa tenha informado que ele usava documento falso com o nome de Ghandi Ferreira da Silva; as declarações da testemunha que disse ter presenciado o assassinato de um homem, no mesmo local e na mesma época, que depois associou a Ronaldo”.

Em seu voto, faz o balanço das evidências contidas nos autos e afirma que prevalece o sentimento de que Ronaldo foi executado. Não há prova do suposto “cerrado tiroteio”. O depoimento da testemunha é convincente e se harmoniza com a versão da requerente. O fato de a morte ter ocorrido em via pública não impede o reconhecimento legal. “O dever dos agentes de segurança é deter o infrator, não executá-lo friamente. Poderiam prendê-lo, mas não o fizeram”, concluiu o relator.

Fonte: Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2007.

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