Jornal CONTRAPONTO, Ano 7, nº 47 - maio de 2007, Faculdade de Comunicação e Fosofia - PUC-SP
Nessa entrevista, que Latuff concedeu em maio ao Jornal CONTRAPONTO — do curso de jornalismo da PUC-SP — o cartunista fala de sua experiência na ocupação da reitoria da USP e discute sobre seu trabalho em charges e o papel da arte dentro do ativismo e dos movimentos de protesto.
"Arte que não transforma é papel de parede"
Cartunista descreve sua experiência na ocupação da reitoria da USP
Papel, caneta e uma idéia. Foi esse o material necessário para que o cartunista Carlos Latuff percorresse os corredores da reitoria da USP distribuindo suas charges pelas paredes. Ainda com o bilhete do ônibus que o trouxe do Rio de Janeiro no bolso, a pretensão era apenas visitar e prestar solidariedade ao movimento que ocupa a reitoria da USP há mais de 30 dias. Sua passagem foi além.
Em cinco dias, mais de dez charges produzidas sintetizam um processo complexo e rápido que ia desde o convívio com os ocupantes à criação in loco dos desenhos. Latuff defende que "é mais rico você produzir esse trabalho estando lá dentro, em contato direto com os alunos e com todo aquele clima que envolve a ocupação, do que fazer isso meramente à distância, em casa, lendo notícias do jornal."
Trabalho semelhante havia sido feito em 1999, quando (Latuff visitou os territórios ocupados da Cisjordânia e abraçou a causa palestina que, mais tarde, consolidaria-se como um de seus temas preferidos. O cartunista foi o primeiro brasileiro a ter publicado um desenho no concurso de charges promovido pela Casa da Caricatura do Irã, em resposta às caricaturas de Maomé divulgadas pela imprensa européia.
Abaixo, a entrevista feita com Latuff em seu último dia como ocupante da reitoria da USP.
Contraponto — Como é que você ficou sabendo da ocupação?
Carlos Latuff — Eu fiquei sabendo pela imprensa, ainda no Rio de Janeiro, e eu queria só fazer uma visita par ver qual era, mas quando vim pra cá fiquei motivado a colaborar com o eu trabalho.
CP — Como é que você chegou na USP?
Latuff — Eu fui convidado para um evento de jornalismo na PUC-SP. O meu querido amigo, Silvio Mieli, me convidou e foi a segunda vez que eu fui e não estava planejada a minha vinda na ocupação, mas quando eu fui informado a respeito, quando eu fiquei sabendo dos detalhes, eu achei deveria não só fazer uma visita, mas também apoiar. Só que eu não imaginava que a coisa ia ter essa repercussão e que eu ia me sentir comovido a fazer esse trabalho e está aí: quatro ou cinco dias só fazendo charges.
CP — Qual foi sua primeira impressão quando chegou na reitoria ocupada?
Latuff — A primeira sensação que eu tive foi estar com a devida vênia em 68, na Sorbonne, ou seja, aqueles alunos todos fazendo um monte de coisa, imagens e faixas. Eu gostei muito daquilo. A priemira impressão de ver aquele prédio ocupado por estudantes já me deu uma satisfação muito grande. Apesar de não ser estudante me senti em casa.
CP — Quantas charges foram produzidas na ocupação?
Latuff — Assim de cabeça eu não me lembro, mas vou te dizer: foi charge para o blog, para o cartaz, a charge virou folheto, teve vídeo charge, charge de pirulito, charge para faixa, fotografia, ou seja, teve uma cobertura cartunística e fotográfica muito boa. A minha produção foi muito boa e o mais legal é que não foi uma produção feita em casa, à distância, ela foi feita no calor dos acontecimentos, então, isso dá um caráter mais interessante ao trabalho.
CP — Sempre com tomada de posição?
Latuff — Sem dúvida, não existe charge neutra. O chargista toma posição, como eu tomo posição e falo isso abertamente: meu trabalho não é imparcial, Ele é absolutamente parcial, ele apóia um dos lados.
CP — Facilitou ter o Serra como um dos personagens?
Latuff — O José Simão deu uma definição muito boa do Serra, que ele é um "genérico dinosferato" e é pura verdade. Ele é o próprio genérico dinosferato. É uma figura que lembra os filmes do expressionismo alemão, aquelas figuras macabras. Só que é uma pena não ser um personagem de cinema, ser um personagem real, de carne e osso, da política, um personagem nocivo, que as suas baterias agora estão voltadas para a educação pública neste estado e é bom ver que os estudantes e servidores estão se levantando contra isso.
CP — Os estudantes colaboraram na criação das charges ou foi um processo que envolveu mais as suas impressões e opiniões?
Latuff — Não, pra ser bem sincero, nem tanto a minha opinião. Antes de finalizá-los [os desenhos], eu fazia um rascunho a lápis e apresentava para as pessoas da [Comissão de] Imprensa, para pegar questões do senso-comum entre os estudantes da ocupação, temas que não houvesse contendas, temas bem objetivos que todo estudante concordaria. A minha preocupação em fazer essas charges é que elas tivessem uma aprovação tácita dos estudantes pelos temas que eles abordam.
CP — Como é que você se relacionou com os diferentes aspectos do movimento de ocupação: pauta de reivindicações, negociações, comissões?
Latuff — Como eu já trabalho com imprensa sindical há ano, você acaba desenvolvendo um sistema para criação de charges, que é o seguinte… Primeiro, antes de dizer isso, dizer que eu imaginei que, ao entrar, ia encara algumas dificuldades, porque antes da minha vinda, eu conversei com uma mulher que é funcionária daqui e ela falou: "Não estão deixando entrar e nem fazer foto lá dentro." Eu imaginei que ia ter uma certa dificuldade, mas assim que me apresentei, algumas pessoas me reconheceram pelo meu nome e isso foi um facilitador.
Uma vez lá dentro, o que eu tinha que fazer era o seguinte: localizar onde havia a estrutura da comunicação, onde se produziam os informes, o blogue, porque ali seria minha área de trabalho. Chegando lá, me apresentar, dizer quem eu sou, o que eu faço, dar referências às pessoas para elas saberem com quem estão lidando. As desconfianças surgiram em alguns momentos e foram naturais, esperadas, mas foram solucionadas.
E, apesar de eu não ser uma pessoa interada com o que se passa na USP, graças a esse sistema de trabalho, esse brainstorm que eu adotei, que uso no meu trabalho sindical, foi só sentar com algumas pessoas e conversar com elas rapidamente para gerar idéias para as charges. Não foi um processo difícil de me interar, por isso até eu acho que é muito mais rico você produzir esse trabalho estando lá dentro, em contato direto com os alunos e com todo aquele clima que envolve a ocupação, do que fazer isso meramente à distância, em casa, lendo notícias no jornal.
CP — Como é que você analisa a situação da universidade hoje? Você acha que a pauta de reivindicação dos estudantes dá conta desse cenário?
Latuff — Eu não tive acesso à pauta e nem tive oportunidade de ler documentos, porque o processo de criação ali é muito dinâmico. Eu não tive tempo pra ficar lendo, mas uma coisa é certa: eu acho que quem deve formular políticas, quem deve falar sobre estratégias, sobre políticas de educação, é quem lida diretamente com isso. Não acho que o Pinotti lide com esse negócio. O Pinotti é um desse secretários que caem de pára-quedas, são indicações políticas, assim como essa reitora. Eu acho que é preciso descer do pedestal e ouvir sim os estudantes, os professores, os servidores, que são pessoas que lidam diretamente com isso, que sabem o que estão dizendo.
Eu creio que essa pauta nem de longe seria surrealista ou impráticavel. Os estudantes e servidores estão a par do que está acontecendo mais do que ninguém, porque estão nas dependências, estão vivendo dia-a-dia, sabem onde o calo aperta mais do que o governador, o Pinotti ou a reitora.
Há uma questão que paira sobre a ocupação da reitoria da USP que diz respeito à intervenção ou não da polícia, já que o mandado de reintegração de posse foi assinado pelo juiz.
Tudo é possível acontecer, mas depois da manifestação [programada para ser em frente ao Palácio dos Bandeirantes] de hoje [31 de maio], em que a polícia não teve uma ação enérgica, eu tenho para mim que a polícia não age autonamente, ela recebe ordens de cima, nesse caso, na entrada do Palácio [dos Bandeirantes] era muita queimação de filme e a gente sabe que o Serra tem planos de se candidatar à presidência, então ficaria muito feio se acontecesse alguma coisa.
Eu percebi, pelo comportamento da polícia, que les receberam ordens para agir de maneira moderada e foi exatamente o que aconteceu. A Rede Globo mostrou que houve confrontos. Não houve confrontos, houve uns empurrões, uns chutes, mas confronto não houve. A polícia foi instruída para não ter confronto, ela estava preparada para isso, aliás, o contingente militar ali era notável, mas eu não creio que houvesse a possibilidade de reação violenta por parte da polícia.
Então, a julgar pelo que eu vi hoje, eu quase posso afirmar que a polícia não vai empreender uma ação violenta contra os estudantes, porque seria um ônus muito grande.
CP — Seus trabalhos anteriores fazem críticas principalmente ao governo dos Estados Unidos, Israel e têm referência na invasão do Iraque e na causa da Palestina. Qual a relação entre esses trabalhos e o que foi desenvolvido na ocupação da reitoria da USP?
Latuff — Todos eles foram feitos com tesão foi o Freire que dizia "sem tesão não há solução"? Então é verdade. Esses desenhos foram feitos com tesão, com o sangue quente, tanto que depois que terminava, eu ficava cansado porque não me dava conta. Às vezes eu ficava mais de duas, três horas, porque eu rascunhava em papel timbrado da reitoria, para dar uma característica mais interessante, depois eu apresentava para as pessoas, finalizava, escanneava para colocar no computador os originais, ia ao xerox com ajuda do pessoal para fazer cópias, depois eu mesmo colava pela ocupação. Eu tinha um acompanhamento do processo do começo ao fim, desde a idéia na minha cabeça até a veiculação.
Isso tem a ver com a discussão sobre esse negócio de ficar sempre perguntando quanto se ganha, quanto é, porque eu não ganhei nada, eu tive gastos, mas o lance é esse. Tem certas coisas que não são medidas em reais, em moeda corrente. O prazer, a satisfação de você saber que está ajudando conta e, nesse caso, o tesão foi exatamente isso. Eu tive muito gosto de fazer aquilo ali. Saber que esse trabalho é de utilidade, que ele cumpre um papel importante dentro dessa luta, me deixa lisonjeado, honrado de fazer parte porque, apesar de ser uma colaboração pequena, eu me sinto um pouco também ocupante da USP. Ocupando com arte.
O movimento que ocupa a reitoria da USP tem proposto novas formas e novas maneiras de atuação para o movimento estudantil, representando uma ruptura com um certo engessamento que há nos fóruns instituídos ao longo da história de luta dos estudantes. Há uma preocupação com a linguagem, com os espaços de formação e até com a comunicação que os estudantes produzem… É uma ruptura, inclusive, com esse modelo da UNE e de DCE. O DCE foi anulado nessa história porque é contrário a essa ocupação e, teoricamente, é uma entidade que representa os estudantes, mas não dessa vez, tanto que foi neutralizado. E como é que isso aconteceu? Foi por força de um partido? Foi por força dos decretos? Não, huve uma organização que se autogeriu e fez. Isso é muito louvável.
CP — Qual é o papel da cultura e da arte, desse potencial de criação dentro do movimento estudantil? O que a arte tem a acrescentar na mobilização dos estudantes?
Latuff — Eu sou partidário de que a arte deva ser utilizada no ativismo em geral. Deveria, por exemplo, haver coletivos de artistas. O movimento atrai naturalmente artistas, músicos. Antes de que chegar já tinha um cartunista ligado a um partido. É muitíssimo importante a arte como forma de estímulo, questionamento. Ao longo dos anos 80, 90, se perdeu um pouco desse conceito da arte engajada, de resistência e acabou-se abraçando esse conceito de que a arte é só mais um produto, que ela deve ser comercial, e acabou-se esquecendo que a arte que não transforma é papel de parede. É importante resgatar esse valor esquecido da arte.