O massacre da Praia Vermelha

Jornal da UFRJ, edição nº 19 • Agosto de 2006
Por Bruno Franco com colaboração de Nathalia Oliveira

A invasão do prédio da Faculdade de Medicina, na madrugada do dia 23 de setembro de 1966, pelas forças da ditadura, resultando em agressões a cerca de 600 estudantes e na depredação das instalações daquela unidade da UFRJ, marca um dos mais importantes momentos do enfrentamento popular ao regime implantado com o golpe militar de 1964 e da permanente luta da universidade por sua autonomia.

De acordo com Antônio Paes de Carvalho – então, professor de Biofísica, atualmente emérito do Instituto de
Biofísica da (UFRJ/UFRJ) – o sentimento prevalente no ambiente universitário era de profunda revolta com o cerceamento das liberdades individuais e de pensamento crítico decorrentes das políticas adotadas pelo governo militar. “Queríamos, todos, discutir os problemas do Ensino e da Pesquisa, e queríamos fazê-lo numa ambiência de liberdade absoluta de reunião e de expressão”, destaca Paes de Carvalho.

O golpe militar chega a 1966 com o Ato Institucional nº 2 (AI-2) instituído por Castelo Branco, jogando por terra a Constituição de 1946 e sepultando as esperanças de um rápido retorno ao Estado de direito. Inicia-se o endurecimento progressivo do regime que nos deixará um acervo, fartamente documentado, de arbitrariedades, censuras e torturas sem precedentes em nossa história.

Um dos fatores que agitou ainda mais a vida acadêmica, em meados dessa década, foi a iminente reforma universitária. A modernização da universidade brasileira era uma necessidade identificada pelos militares, acredita Paes de Carvalho. No entanto, ela acabaria nos impondo uma versão do modelo americano de Ensino Superior, tal como estipulado no acordo entre o Ministério da Educação e Cultura e a United States Agency for International Development – conhecidos como Acordos MEC-Usaid – que foi amplamente rejeitado por professores e estudantes. “O governo alegava também que o aperfeiçoamento não poderia ser feito num clima de liberdade de expressão devido à enorme influência marxista no meio universitário, que resultava no engajamento ‘subversivo contra qualquer influência americana”, relata o professor.

A agenda da comunidade universitária pautava diversas reivindicações como a ampliação da representação discente nos colegiados, a própria autonomia universitária, o fim da cobrança de anuidades, estabelecida pela Lei 4.464/64, conhecida como Lei Suplicy de Lacerda, que também proibia as atividades políticas nas organizações estudantis, regulamentando suas entidades representativas. Esse cenário motivou a escalada de ações de parte a parte – avalia Paes de Carvalho – e “a repressão apertou em desproporção com qualquer
possível ameaça da ordem pública representada pelo meio estudantil”.

O governo militar procurava aumentar as vagas do Ensino Superior, uma espécie de resposta aos setores da classe média que haviam apoiado o golpe e que viam no Ensino Superior a mais importante porta para a ascensão social, na medida em que alternativas haviam sido fechadas em decorrência de alterações estruturais do capitalismo brasileiro. Em pouco tempo, a matrícula nas universidades pulou de 180 mil estudantes para perto de 1,200 milhão. “Infelizmente isso se deu sem o necessário aumento de corpo docente, causando séria lesão
à qualidade em muitos setores da universidade, relativamente elitista”, destaca Paes de Andrade. O governo militar logo percebeu esse problema e desenvolveu um enorme esforço para implantar uma pós-graduação científica moderna no País, com a mobilização de recursos vultosos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, mais tarde, da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) para ampliar a capacidade de pesquisa e inovação nas universidades. “Esse talvez tenha sido um benefício, que valeria a pena retirar do bojo da contenda entre movimento estudantil e governo”, reconhece o professor.

A invasão

O ano de 1966 marca certa inflexão no apoio que os setores de classe média dispensavam à ditadura. Ficava cada vez mais evidente, sobretudo a partir do AI-2, que, ao contrário do que haviam afirmado os militares, estava em curso um projeto de institucionalização do regime. O movimento estudantil refletirá de forma emblemática esse descontentamento que explodirá em revolta aberta dois anos depois. A UFRJ desempenhará
papel de protagonista. Seus estudantes vão protestar contra o aumento do preço das refeições (que passou de 50 para 220 Cruzeiros); condenar o fechamento da União Nacional dos Estudantes (UNE) e o pagamento de anuidades; reivindicar a libertação de Rodrigo Lima, estudante da Faculdade Nacional de Direito (FND), que acabou preso por 35 dias no Batalhão de Guardas do Exército e a reabertura do Calabouço, restaurante de estudantes, no Centro da cidade do Rio de Janeiro.

O clímax das manifestações do ano ocorre em setembro, com a UNE elegendo o dia 22 como o “Dia Nacional de
Luta contra a Ditadura”. A situação já se encontrava tensa entre militares e estudantes desde o início do mês quando o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO) da FND foi dissolvido e estudantes foram presos na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi).

Estudantes de quase todas as faculdades cariocas organizaram um movimento de greve geral. Havia, desde a véspera, ameaças de invasão da Faculdade Nacional de Medicina (FNM). Após uma passeata no dia 22, uma quinta-feira, os estudantes se concentravam em frente à faculdade, cercada por choques militares desde a manhã. Durante todo o dia foram realizadas assembléias e reuniões na Medicina, de início com a presença do reitor Pedro Calmon. O dia transcorre com discursos e negociações entre representantes estudantis e autoridades acadêmicas, que pediam garantias para a retirada pacífica dos estudantes. Almir Fraga Valladares, professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina (FM) e atual decano do Centro de Ciências da Saúde (CCS) – na ocasião, matriculado no sexto período do curso médico – chegou às instalações da FNM, no Campus da Praia Vermelha, no início da tarde do dia 22.

Estava ocorrendo, naquele momento, uma assembléia do movimento estudantil, presidida por Vladimir Palmeira, relembra Fraga. “Eu era favorável ao movimento, mas não fazia parte das lideranças. No meio da tarde, começou a haver o cerco da Polícia Militar, com a orientação de que se esvaziasse o prédio, e de que a sua ocupação era proibida”, rememora o professor.

De acordo com Paes de Carvalho que, juntamente com os também professores Lauro Sollero e Eduardo Penna Franca, prestava assistência ao diretor em exercício da Faculdade de Medicina, Paulo da Silva Lacaz (o diretor,
José Leme Lopes, encontrava-se em um congresso em Madri), houve diversas negociações, ao longo do dia, entre a direção e a Reitoria (exercida por Pedro Calmon) e, de outro lado, as forças policiais militares que sitiavam o prédio. A preocupação central era evitar a invasão. Ao cair da noite, um grupo considerável de estudantes já havia saído, e os professores deixaram a FNM nesse momento.

De madrugada, de 2h para às 3h, os policiais arrombaram a porta lateral e invadiram o prédio. “Foi aquela correria, aquela agressão generalizada”, afirma Almir Fraga. “A maior parte das pessoas, como no meu caso, foi autorizada a sair e teve de passar por um ‘corredor polonês`. De vez em quando davam uma ‘borrachada (os cassetetes eram de borracha) em um dos que passavam. Que eu me lembre, levei apenas uma ‘borrachada` no ombro, sem grandes danos. Fui para a casa e somente soube das conseqüências da invasão depois, pelo noticiário”, descreve o decano.

“Infelizmente, não conseguimos esvaziar o prédio e, mais tarde, a tropa invadiu a faculdade, revirando sala por sala à procura dos resistentes. No dia seguinte, voltando ao prédio, constatamos que todos os laboratórios haviam sido arrombados e seus conteúdos vandalizados”, recorda-se Antônio Paes de Andrade.

Regressando da Europa, o diretor da FNM, professor José Leme Lopes, afirma ao jornal Correio da Manhã, edição de 01/10/1966, que “A autonomia universitária não foi ferida com a invasão das tropas da polícia, pois há muito ela não existe, sendo a universidade, hoje, um mero departamento do Governo”.

Um dia que não pode ser esquecido

O dia 23 de setembro de 1966, lembrado como o Massacre da Praia Vermelha, passou à história como um evento símbolo que evidencia a importância do movimento estudantil na luta pela democracia e pela autonomia universitária, defende Almir Fraga.

Opinião semelhante à de seu colega Antônio Paes de Carvalho, para quem o evento deve ser rememorado pelos “atos de bravura (por vezes impensada) de uma juventude acostumada a respirar liberdade e que se via subitamente sufocada”.

O panorama atual não inspira mais a ousadia de antes, acredita Paes de Carvalho. Para o professor, “a norma passou a ser o silêncio acanhado, a cautela, e uma dose enorme de cinismo diante do que estamos assistindo. Esse estado de coisas não favorece os grandes atos de resistência”. Mais otimista é Almir Fraga, para quem, atualmente, “estudantes, professores, diretores e técnicos-administrativos têm interesses semelhantes e somam
seus esforços. Em 1966, as direções eram muito pressionadas e foram parar na clandestinidade, mas a mobilização persistiu e não deixou a sociedade acomodar-se com a repressão”.

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