UNE, 23 de setembro de 2007

Por Tatiana Matos Rezende1
A partir de 1966, os protestos estudantis pelas principais capitais brasileiras se intensificam ocasionando uma violenta e generalizada reação policial. O episódio ficou conhecido como "massacre da Praia Vermelha", dada a crueldade empregada contra 600 estudantes que se encontravam em vigília na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (atual UFRJ) no campus da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Os estudantes manifestavam-se contra as medidas governamentais antidemocráticas que feriam a autonomia universitária e o encrudescimento do regime militar, que respondeu com brutalidade à oposição dos estudantes.
23 de setembro: 41 anos do massacre da Praia Vermelha

O Reitor Pedro Calmon e professores conversando com policiais militares, na ocasião do conflito na Faculdade Nacional de Medicina (FNM).
Desde a eclosão do golpe de 1964, o autoritarismo político e a repressão à mobilização estudantil vinha crescendo gradativamente. No momento seguinte ao golpe, decretou-se a lei Suplicy de Lacerda que tornou as entidades estudantis ilegais permitindo somente agremiações corporativas atreladas ao Estado. A UNE e as UEE’s [Uniões Estaduais dos Estudantes] continuavam organizadas, mesmo que extintas oficialmente, e a alternativa encontrada para atuar dentro das universidades foi a criação de organizações "livres", paralelas às oficiais, o que fez com que os centros e diretórios tradicionais ficassem controlados pela direita.
Os primeiros anos do regime ditatorial entre 1964 e 1966 são marcados pela oposição declarada dos estudantes em relação ao governo golpista através de boicotes à Lei Suplicy, greves e manifestações. Os protestos se dirigiam, especialmente, contra a intervenção norte-americana na educação brasileira por meio do Acordo MEC-USAID — entre o Ministério de Educação e Cultura do Brasil e a United States Agency for International Development — de assessoria para a modernização da administração universitária, assinado em 25 de junho de 1966.
Além da Lei Suplicy e dos Acordos MEC-USAID, sem falar no combate ao próprio regime, o movimento estudantil enfrenta uma nova trama do governo: a criação do MUDES (Movimento Universitário para o Desenvolvimento Econômico e Social) , com o intuito de transformar o protesto "vazio" em ação social efetiva, ou seja, esvaziar o movimento estudantil canalizando o idealismo juvenil para o trabalho voluntário e apolítico.
Somado a essas questões, a UNE promoveu o boicote contra a cobrança de anuidades nas instituições públicas de ensino superior, vista pelos estudantes como uma privatização e elitização da educação que tornaria a universidade um reduto das camadas sociais mais abastadas. Segundo o Relatório Atcon, feito por um representante da USAID, os custos sobre o ensino superior brasileiro deveria ser equitativamente dividido entre a instituição e o próprio aluno, o que impediria, dessa maneira, o acesso dos mais pobres à universidade.
Setembro de 1996, segundo Arthur Poerner, autor do "O Poder Jovem", foi um dos períodos mais agitados e heróicos da história do movimento estudantil brasileiro: suspensão das aulas na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, prisão de 178 estudantes durante do congresso da UNE, em São Bernardo do Campo (SP), protestos em Minas e no Distrito Federal. Essa efervescência do ME ficou conhecida como "Setembrada", marcada por manifestações espontâneas por todo o país diante da violência empregada numa das invasões à Universidade de Brasília, uma das instituições que mais sofreram ataques à sua autonomia, pela violação de seu campus por quatro vezes durante a ditadura visando a prisão de estudantes.
O militante da Ação Popular e presidente da UNE em 1969, Jean Marc Von Der Weid que na época era estudante da Faculdade de Química da UFRJ, fala sobre o período:
"Em 1966, com as manifestações de rua contra a ditadura tivemos um momento que foi, ao mesmo tempo, quase um apogeu e o começo de uma queda vertiginosa: foram as "setembradas", uma série de manifestações que ocorreram em setembro de 1966, que, no Rio, culminaram com a ocupação da Faculdade de Medicina na Praia Vermelha. (…) Mas eram, essencialmente, mobilizações políticas. A denúncia da ditadura era o nexo principal. Foi quando as tentativas de mobilização em torno da questão do pagamento da anuidade deram resultado desastroso."2

Caminhão de Choque de Policiais militares persegue estudantes em confronto na Praia Vermelha
Madrugada do massacre
Diante dessas imposições governamentais que feriam a autonomia universitária, a UNE estabeleceu o 22 de setembro de 1966 como o Dia Nacional da Luta contra a Ditadura, convocando greve geral e passeata no Rio de Janeiro sob o lema "Povo organizado derruba ditadura". Após o protesto, 600 estudantes se abrigaram na Faculdade Nacional de Medicina (FNM) sendo encurralados pela Polícia Militar que, antes do fim das negociações da retirada dos manifestantes, derrubou os portões da FNM. Durante a madrugada do dia 23, as forças policiais do regime militar espancaram cruelmente os jovens estudantes e depredaram as instalações da faculdade, em evidente sinal de desrespeito ao patrimônio público.
De acordo com o relato de José Luís Guedes, presidente da UNE entre 1966 e 1967 e militante da Ação Popular:
"E o que é que a Polícia fez? Esperou dar 3 horas da madrugada, nós estávamos bem organizados lá dentro, mas incapazes de resistir pela força. (…) Essa barbárie estourou ali quando a porta arrebentou. Derrubaram a porta e os policiais invadiram drogados, literalmente drogados porque, de forma consciente, não teriam força para fazer o que eles iriam fazer: massacrar centenas de estudantes que estavam ali. Pedindo o quê? Pedindo reforma universitária, pedindo reformas, dizendo que a reforma não podia estar sendo capitaneada pelo MEC-USAID, tentado negociar, dialogar."3
Também Vladimir Palmeira, presidente do CA 22 de Agosto e membro da Dissidência Comunista da Guanabara, relembra o clima de terror da invasão policial em repressão aos estudantes refugiados no campus da Praia Vermelha:

Estudante ferida sendo carregada (Acervo Correio da Manhã/ Arquivo Nacional)
"Muitos pais de estudantes e alguns políticos organizaram uma comissão para negociar a saída dos estudantes, mas a polícia invadiu a faculdade com bombas e cacetetes. Os estudantes ficaram encurralados pelos policiais e descerram os três andares do edifício debaixo de pancadas, enquanto agentes do DOPS esperavam na porta para prender as lideranças. Mesmo com toda a violência empregada na invasão, os líderes não foram identificados e apanhados. Contudo, o movimento deu arrefecida diante do temor geral que se instalou sobre os estudantes devido à brutalidade com que foram tratados, sendo que nem as mulheres foram poupadas da violência física. A grande maioria que presenciou o terrível episódio só voltou a participar de manifestações públicas contra a ditadura militar nos protestos de 1968, em especial, a Passeata dos cem Mil."4
O episódio expõe o clima de intolerância e descortina o endurecimento do regime instaurado em 1964. O Massacre da Praia Vermelha consiste no primeiro grande embate entre estudantes e o aparato repressivo do militar que culmina em agressões físicas e verbais, prisões e desrespeito humano. A violência policial causou grande revolta e temor, apesar de sua repercussão pública, houve uma diminuição dos protestos de massa visto que, em 1967, o ME se encontrava razoavelmente enfraquecido e com pouca mobilização popular e política, o que tornava manifestações se mais pontuais. Essa situação se inverte, em 1968, a partir da morte do estudante Edson Luís num protesto pela preservação do restaurante estudantil Calabouço. Seu assassinato mobilizou a opinião pública contra a ditadura militar através de grandes protestos, culminando na Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro.
O dia 23 de setembro de 1966 marcaria, contudo, a história do movimento estudantil brasileiro. Lembrado como o Massacre da Praia Vermelha, permanece como um dos símbolos da luta e ousadia dos estudantes contra o governo militar, pela democracia, liberdade de expressão e autonomia universitária.
Referências
ARAÚJO, M. Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007.
DIRCEU, José e PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a ditadura: o movimento de 68 contado por seus líderes. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
FÁVERO, M. Lourdes. A UNE em tempos de autoritarismo.Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
POERNER, Arthur. O Poder Jovem. 5ª ed. revista. Rio de Janeiro: Booklink, 2004.
UFRJ. 40 anos da Invasão da Faculdade Nacional de Medicina. Encarte da edição nº 19 do Jornal da UFRJ, agosto de 2006. Disponível em http://www.jornal.ufrj.br