A Greve Estudantil da FFLCH-USP e sua cobertura pelo Estadão

Este artigo analisa a cobertura dada pelo jornal O Estado de S.Paulo sobre a greve de alunos da FFLCH-USP em 2002.

Gabriel Passetti
Quarto Ano — História/USP

Introdução

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Durante os últimos meses, o tema do Ensino Superior Público e consequentemente das Universidades Públicas teve amplo destaque na imprensa paulista. Três casos separados evidenciam a atual situação enfrentada por tais instituições: a greve estudantil na FFLCH-USP, o corte no fornecimento de energia elétrica à UFRJ e as polêmicas acerca da ampliação dos cursos na Unesp.

Acompanhar tais assuntos através da grande mídia é complicado devido à ideologia implícita aos textos. Porém, esta é a forma na qual a ampla maioria da sociedade mantém-se informada. Analisar, então, este discurso se faz de fundamental importância.

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O contraste chocante nas salas de aula da Letras: antes e durante o movimento grevista

Há inúmeros estudos acerca do papel da grande imprensa ao longo da História Contemporânea brasileira e mundial, e a proposta deste texto é de iniciar uma interpretação dos textos publicados pelo jornal O Estado de São Paulo acerca da já citada greve estudantil da FFLCH-USP.

A fonte mostra-se de fundamental importância principalmente por dois motivos: tal jornal é indiscutivelmente um dos dois maiores do Estado de São Paulo, junto da Folha, sendo portanto um importante formador de opiniões, além disso, O Estado apresenta uma relação ainda mais próxima da Universidade de São Paulo devido à enorme importância que teve em 1934 na luta pela fundação de tal instituição.

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Aula pública sobre maio de 1968 com as professoras Aquino e Olgária nas escadarias do Teatro Municipal

Os outros dois assuntos, os cortes de energia na UFRJ e a polêmica acerca da criação dos novos cursos na Unesp são também de grande importância, mas ainda estão em andamento, enquanto que a greve na FFLCH já se encerrou.

São, antes de qualquer coisa, dois sintomas do que vem ocorrendo também na USP e que será discutido a seguir.

Este texto é baseado nas aulas da Professora Maria Lígia Coelho Prado na disciplina de História das Idéias do Departamento de História da Universidade de São Paulo, na leitura dos artigos publicados por O Estado de São Paulo sobre a greve e, principalmente, a partir das discussões e vivências como participante no movimento grevista da FFLCH-USP em 2002.

O Estadão e a fundação da USP

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Sala da Geografia interditada

Portugal, ao colonizar suas terras americanas pensou em um caminho diferente para educação daquele aplicado por Espanha e Inglaterra. Enquanto os espanhóis instalaram Universidades em suas colônias americanas desde o século XVI com a Real e Pontifícia Universidade do México em 1554, e a Universidade de São Marcos, em Lima, em 1555, os ingleses viram o surgimento de Harvard em 1636 (dezesseis anos após o início da colonização), Portugal optou por manter o monopólio do Ensino Superior na metrópole, com os filhos da elite colonial indo estudar principalmente em Coimbra.

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Sala da Filosofia interditada

Logo após a Independência do Brasil, foram fundadas Faculdades de Medicina (Salvador e Rio de Janeiro) e Direito (São Paulo e Olinda), mas sua forma de ensino manteve-se excenssialmente técnica, sem a produção de ciência, somente com sua reprodução.

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Corredor da História interditado

Durante as últimas décadas do Império e o início da República, havia duas principais linhas que se opunham à criação de Universidades. Os positivistas eram contrários devido aos seus princípios filosóficos, afirmando que o Ensino Superior deveria manter-se fundamentalmente técnico, sem a "perda de tempo das aulas de filosofia metafísica". Por outro lado, inúmeros parlamentares afirmavam que o Brasil deveria investir primeiro no Ensino Básico para depois pensar no Superior. Claramente ambas as linhas defendiam projetos políticos dentro dos quais as Universidades não entravam.

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Prédio das Letras interditado

Os liberais, por outro lado, lutavam pela criação de Universidades, saindo inclusive do modelo profissionalizante personificado pelas Faculdades de Medicina, Direito e Engenharia. Defendiam uma Universidade com um núcleo de Filosofia, para mudar o Brasil, tirando as oligarquias do poder e colocando em seu lugar uma elite intelectual: eles. O projeto liberal-democrático pressupunha a Educação Superior para a formação destas elites, sendo que elas não seriam necessariamente as elites financeiras, mas sim aqueles considerados "os mais aptos".

A questão que levantamos, então, é: como localizar estes "mais aptos" em um país onde o índice de analfabetismo era imenso e apenas uma pequena minoria tinha acesso à Educação?

De uma forma ou de outra, acabava sendo uma minoria endinheirada quem tinha acesso à educação e portanto à Universidade, formando assim a "elite intelectual" que moveria o país. Nada disto saía dos planos dos liberais, que pretendiam mover as oligarquias e sua "falsa defesa dos princípios republicanos" e colocarem-se em seu lugar.

No Estado de São Paulo havia um forte núcleo liberal encabeçado pelo grupo reunido em torno da família Mesquita e do jornal O Estado de São Paulo. Para tais pessoas, a aplicação do modelo liberal exposto no parágrafo acima ainda colocava o próprio Estado de São Paulo em destaque, sendo considerado um membro excepcional da Federação, resgatando a idéia da importância dos bandeirantes para a ampliação do território e a imagem-símbolo da "locomotiva do Brasil".

Em 1926 este grupo promoveu a partir do jornal uma pesquisa pública acerca da educação no Estado de São Paulo, procurando levantar seus principais problemas e buscando soluções. Durante os anos seguintes, apoiaram o Partido Democrático e Getúlio Vargas. Após a instalação do novo regime em 1930, logo desentenderam-se devido à nomeação de um interventor para o Estado que não era de seu grupo político, e passaram a fazer oposição.

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O prédio da Faculdade de Medicina alojou a partir de 1934 as seções de Filosofia, Ciências Sociais, Geografia, História e Línguas e Literaturas.

Dois anos depois, em 1932, conseguiram unir forças no Estado com as mais diversas tendências políticas — unindo inclusive os rivais PD e PRP — para lutar contra o centralismo getulista e eclodiu a Revolução Constitucionalista. Derrotada em armas, esta conseguiu uma grande vitória com a nomeação de Armando de Salles Oliveira como interventor para o Estado.

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O prédio da Escola Politécnica abrigou a partir de 1934 as seções de Matemática e Física. Esta, saiu de lá em 1938 para sua sede própria.

Salles de Oliveira era cunhado de Júlio de Mesquita Filho, dono de O Estado de São Paulo, e portanto tinha fortes vínculos com o grupo liberal do Estado. Dois anos depois, o maior sonho deste grupo pôde ser concretizado. Em 25 de Janeiro de 1934, o interventor baixava o decreto nº 6.283 fundando a Universidade de São Paulo.

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A partir de 1938, a FFCL passou a alojar suas seções de Letras, Filosofia, Geografia, História, Ciências Sociais e Pedagogia no prédio da Escola Normal Caetano de Campos

A mera fundação de uma Universidade não significava grande avanço, tendo em vista que o próprio governo federal da República Velha havia criado em 1920 a Universidade do Rio de Janeiro (futura UFRJ), e em 1927 a Universidade de Minas Gerais (futura UFMG).

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No prédio da R. Maria Antonia, em Higienópolis, (incendiado em 1968), funcionaram a partir de 1949, as seções de História Natural, Química, Letras, Filosofia, Geografia, Ciências Sociais, Pedagogia e Psicologia

Porém, o projeto de Universidade aplicado em São Paulo pelo grupo de O Estado de São Paulo era diferente daquele presente nas fundações de 1920 e 27. Enquanto aquelas Universidades eram agrupamentos de Faculdades técnicas, a proposta dos liberais paulistas era outra.

Para eles, a Universidade deveria unir cursos técnicos com uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que seria o centro nervoso desta instituição, local de formação da sua planejada elite paulista/brasileira e de criação de ciência, para difundir os princípios democrático-liberais pelo país.

E este modelo foi aplicado na USP em 1934. Tal Universidade tinha, além das Faculdades de Direito, Medicina, Farmácia e Odontologia, das Escolas Politécnica, de Medicina Veterinária, Superior de Agricultura e de Belas-Artes, e dos Institutos de Educação e Ciências Econômicas e Comerciais, uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, para qual foram contratados diversos professores estrangeiros tendo em vista que não havia especialistas na área no país.

Entre eles, vieram o antropólogo Claude Lévi-Strauss e pouco depois o historiador Fernand Braudel, entre outros.

A fundação da USP não pode ser pensada separada da criação da FFCL (futura Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas após a saída de diversos cursos para a formação de Faculdades e Institutos, como Química, Física ou Biologia) e da pressão exercida pelo grupo liberal de O Estado de São Paulo. Desta forma, a greve estudantil na FFLCH tem ainda mais destaque para o futuro e o modelo aplicado a esta Universidade, e a repercussão desta no Estadão se faz de forma ainda mais interessante porque este jornal ainda explicita em diversos momentos seu sentimento de "pai da USP".

Histórico da greve

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Cortejo fúnebre para o Curso de Letras passou por diversas Unidades da USP em 7 de maio, inclusive pela Assembléia que votou pela greve na História (última foto)

Desde o começo de 2002, parte dos estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo discutiram o estado atual das aulas, inconformados com a precariedade nas condições de ensino, que eram resumidas a aulas-palestras para mais de cem espectadores com pessoas sentadas no chão e nos corredores internos da Faculdade. O principal problema não era que isto vinha ocorrendo devido à notoriedade de um professor em especial, mas sim que esta era uma visão rotineira por toda a FFLCH devido ao baixo número de docentes ministrando disciplinas.

As condições nos cursos da área da Letras eram as piores qualitativamente, chegando por exemplo o curso de graduação em japonês a não começar o semestre até o romper da greve em decorrência da ausência de docentes. Foi exatamente entre aqueles alunos que surgiu a idéia inicial de procurar respostas aos problemas vivenciados em seu dia-a-dia.

Depois de algumas paralisações das aulas em protesto e discussões sobre os problemas da Faculdade, a Pró-Reitora de Graduação da USP, Sra. Sonia Penin compareceu à Faculdade para explicar o que estava acontecendo. Até aquele momento, tudo estava relativamente calmo.

Ela disse naquela oportunidade que o problema da FFLCH não era exclusividade daquela unidade, mas sim algo generalizado em toda a USP e que poderia ser sanado com algumas ações como ampliação física das salas de aula, compra de ventiladores e a contratação de professores temporários, além da utilização de monitores. Os estudantes, estarrecidos, pediam por professores doutores em RDIDP (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa).

A resposta da Reitoria a esta solicitação veio pouco tempo depois: seriam contratados 12 professores para o ano de 2003. Esta resposta revoltou, pois representava quase nada (aproximadamente 3,5% do atual quadro) quando comparado ao número total de professores da Faculdade, que se aproxima dos trezentos e cinqüenta. Tendo em vista que a Reitoria alega poder contratar duzentos docentes por ano e a FFLCH representa 20% do alunado da USP, o número justo seria pelo menos de 40.

Letras então decidiu entrar em greve. Era dia 29 de abril. Logo a situação alastrou-se rapidamente pelos outros cursos da Faculdade, que entraram em greve em um efeito cascata nas duas semanas seguintes, até que o último, Filosofia, também aderiu.

Estando toda a Faculdade parada, logo o Diretor, Francis Henrik Aubert, assumiu posição a favor do movimento estudantil grevista, lembrando que a Congregação (maior instância da Faculdade) também apoiava os estudantes e já solicitara a contratação de 115 docentes junto à Reitoria.

A maior tarefa era, então, elaborar um número a partir do ponto de vista estudantil a ser solicitado à Reitoria. Logo, viu-se que a questão não era apenas de números. O principal problema estava na política de contratação, que colocava nas mãos da Reitoria, a partir de sua Comissão de Claros, a responsabilidade por optar quais e quantos docentes seriam contratados para cada Unidade.

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Hélio Nogueira da Cruz irritou aos estudantes, que colocaram narizes de palhaço e deram cartão vermelho à sua exposição

Sem saber ainda quantos professores queriam, os estudantes chamaram o presidente desta Comissão de Claros e Vice-Reitor da USP, Hélio Nogueira da Cruz, para negociar de forma pública a contratação de novos docentes, explicando ao mesmo tempo a atual política para esta área por parte da Reitoria.

O Vice-Reitor foi à FFLCH no dia 17 de maio e encontrou na sua recepção um Anfiteatro de Geografia lotado, com pessoas sentadas no chão e outras de pé. Uma situação semelhante a uma sala de aula daquela Faculdade.

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Mascarados convocam poderes sobrenaturais para ajudarem a Reitoria nas contratações

Nesta reunião, ele declarou que naquele momento não poderia fazer mais nada (além dos 12 já em via de contratação) tendo em vista que os procedimentos para a abertura de novos docentes dependiam de uma solicitação formal da Faculdade à Comissão de Claros, que com a devida prudência discutiria a questão. Porém, em seu discurso, deixou claro o pensamento daquela comissão: os critérios para a contratação eram, entre outros, a nota de corte e a relação candidato/vaga no vestibular da Fuvest. Tal afirmação deixou os estudantes estarrecidos, tendo em vista que tais números não embasam nenhuma necessidade real por contratação, apenas evidenciam a elitização da Universidade em torno de cursos com grande concorrência e que dificilmente ampliam suas vagas, ficando restritos fundamentalmente a uma minoria de mais preparados, quase sempre os mais ricos.

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O Vice-Reitor sai do Anfeatro da Geografia e na seqüência é "escoltado" até a saída do câmpus

Nogueira da Cruz afirmara que estes critérios já existiam e eram utilizados, e que não poderiam ser substituídos de uma hora para outra por outros, como por exemplo a relação aluno/professor em sala de aula dos cursos de graduação.

Quando acabou a exposição, o Vice-Reitor enfrentou duas manifestações. Na primeira, ainda dentro do Anfiteatro, um grupo de estudantes encapuzados colocou sobre a mesa uma representação de um ato de magia negra, simbolizando que somente com forças divinas a situação se resolveria.

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Ato na entrega da pauta de reivindicações à Reitoria (28/05)

Ao sair do Anfiteatro, uma multidão de estudantes o seguiu, manifestando seu repúdio à situação e à política de contratações da Reitoria. Tal manifestação cercou o carro e o acompanhou até a saída do câmpus (algumas horas depois), sem antes enfrentar situações de tensão junto à Guarda Universitária ou mesmo a Polícia Militar. Ambas, após intensa negociação intermediada pelo próprio Nogueira da Cruz permitiram a continuidade da manifestação, logo engrossada por estudantes de outras Faculdades.

Os estudantes, em suas Assembléias de Curso, e da Faculdade, passaram então semanas discutindo como levantar os números e qual a metodologia a ser empregada: uma só para toda a FFLCH, cada curso com a sua, os números referentes a 1990 transpostos à realidade de 2002, ou então as necessidades de cada curso. Ao final, cada curso usou sua própria metodologia para levantar os números, mas sempre baseados na conversa com os departamentos e na análise nos dados contidos no Anuário Estatístico da USP de 2001.

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"Acabou o amor. Isso aqui vai virar o inferno", inscrição no asfalto durante Fúria I

Logo os dados passaram a ser lidos e a real situação apareceu: a FFLCH, com cerca de 13.000 alunos (20% da USP), possuía aproximadamente de 7,2% do total de professores da Universidade. Se a média de alunos por professor na USP atingia o número de 14/1, na FFLCH isso saltava para 34/1 e na História, pior relação de toda a Universidade, era de 51/1. Com base neste levantamento, os cursos pesquisaram seus problemas, demandas, disciplinas super-lotadas e aquelas que não eram mais administradas e chegaram aos seus números. Como forma de luta, optou-se pela unificação das solicitações em uma única: 259 professores para toda a FFLCH.

Neste momento (praticamente um mês de greve, final de maio), os docentes manifestavam seu total apoio à greve, mas a Reitoria continuava negando a negociar com os estudantes. Toda e qualquer reivindicação era aceita somente pela intermediação de uma comissão extraordinária de negociação dos professores com a Reitoria.

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Faixa afixada em ponto de ônibus durante a festa

Tal situação não era aceita pelos estudantes, que questionavam a legitimidade desta negociação e os números defendidos (115, da Congregação), lembrando que a greve era dos estudantes e não dos professores, apesar do seu apoio.

O dia 6 de junho foi marcante para a greve. Depois de praticamente 40 dias de mobilização, sem resposta da Reitoria, veio finalmente o número final da comissão extraordinária de negociação dos professores: 26 contratações, para 2003. Tal número foi rechaçado pela Assembléia dos Estudantes da FFLCH, afinal este número significava praticamente 10% da solicitação estudantil.

A resposta à Reitoria veio na forma de uma ocupação, da criação de uma TAZ (Zona Autônoma Temporária) na Av. Prof. Luciano Gualberto na frente dos três prédios da Faculdade como forma de mostrar à Reitoria que a situação não seria resolvida tão facilmente e de lembrar a mídia e os demais estudantes da USP do que estava ocorrendo na FFLCH naquele instante.

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A publicização da greve estava ocorrendo até aquele momento a partir de aulas públicas em locais movimentados da cidade como o centro e a avenida Paulista, ou ainda dentro da USP. Em uma destas aulas surgiu a primeira manifestação que teve um caráter que poderia ser lido como mais ativo, mas não violento.

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Guarda Universitária flagrada fotografando manifestação grevista em 23 de maio

Devido à negação da Reitoria em negociar com os estudantes, durante aula pública promovida pelo professor da História, Nicolau Sevcenko, em frente à Reitoria no dia 23 de maio, um grupo de estudantes soltou rolos de papel higiênico sobre a porta de entrada da Reitoria, e depois um outro grupo estendeu uma faixa na qual lia-se a mensagem: "Vende-se. Tratar com Melfi" (Reitor da USP).
Mesmo com o caráter pacífico adotado pelas manifestações dentro da USP, que resumiam-se à concentração de estudantes da FFLCH e passeata pelas outras unidades da Universidade alertando aos demais estudantes da greve enfrentada, finalizando-se sempre na frente do prédio da Reitoria, a administração central da Universidade insistiu sempre em acompanhar de perto tais atos, fotografando seus integrantes. Tais ações também eram realizadas durante Assembléias.

A ocupação da Av. Prof. Luciano Gualberto foi, então, a primeira medida que poderia ser considerada mais enérgica, mas pacífica, por parte dos estudantes.

Também uma resposta à intransigência da Reitoria quanto aos números e, principalmente, sua negação em negociar com discentes. O Vice-Reitor dizia que depois da manifestação de 17 de maio não negociava mais, Melfi afirmava que não era de sua competência, mas sim da Comissão de Claros, que por sua vez dizia que já estava negociando (no dia da festa, propôs 26).

A partir de Fúria (o nome dado à festa), a greve começou a tomar outros rumos, deixando de lado as aulas públicas e passando para outras ações, igualmente pacíficas, mas que incomodavam mais, tentando chamar a atenção para o impasse gerado. No dia seguinte à festa (7 de junho), uma manifestação na FEA (Faculdade de Economia e Administração) durante a aula do Vice-Reitor Hélio Nogueira da Cruz, deu margem a classificações como "baderneiros", por exemplo, afinal os alunos grevistas tentaram assistir às aulas daquele professor para mostrar aos estudantes da FEA que a reivindicação era justa. Nogueira da Cruz, entretanto, negou-se a lecionar aos alunos grevistas.

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Placa entregue pela Adusp ao DCE em 16 de maio

Na semana seguinte, começou uma tentativa de ampliação do movimento. Enquanto os docentes da Faculdade apoiavam a greve, tentavam convencer seus colegas do restante da Universidade a pararem em igual apoio, movimento iniciado pelos funcionários. Como a negociação (oficialmente, a reivindicação era salarial) fluiu rapidamente — bem mais do que o normal — logo docentes e funcionários se desmobilizaram e uma greve mais ampla foi impedida.

Enquanto a greve se desenrolava, duas outras atividades de enorme importância apareciam para o movimento grevista: o Exame Nacional de Cursos (o Provão) e a eleição para Diretor da FFLCH.

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O ato com os Professores Notáveis lotou o Auditório Camargo Guarnieri, público que depois seguiu para a frente da Reitoria para pressionar pela abertura das negociações com os estudantes

Dois mil e dois foi o primeiro ano no qual cursos da FFLCH foram avaliados pelo Provão (História e Letras), e a mobilização da greve acabou, contraditoriamente, por desmobilizar as pessoas para os debates acerca da avaliação promovida pelo Ministério da Educação. De qualquer maneira, Assembléia das Letras optou por boicotar o Provão, e informalmente, a História seguiu os mesmos passos, ambas questionando a forma e a intencionalidade de tal Exame.

As eleições para Diretor da FFLCH giraram em torno da questão da greve, da contratação de professores e da ampliação da democracia na Faculdade. Se entre os professores houve algum debate, o mesmo praticamente não pode ser dito dos estudantes. Houve alguma discussão e a divulgação de cartas-programa, mas a escolha recaiu de novo (como oficialmente deve ocorrer) nas mãos dos docentes, que votaram pelo professor Sedi Hirano para substituir Francis Henrik Aubert - os outros concorrentes eram Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da Geografia, e Alfredo Bosi, das Letras.

19 de junho marcou o que deve ter sido o maior ato de toda a greve. Organizado pela Adusp (Associação dos Docentes da USP), um Ato em Defesa da FFLCH com professores notáveis como Antonio Candido, Aziz Ab'Saber e Marilena Chauí reuniu cerca de 1.500 estudantes da FFLCH e de outras Unidades da USP no Auditório Camargo Guarnieri. Após criticarem duramente a Reitoria e exporem suas concepções de Universidade, os notáveis se propuseram a interceder junto à Reitoria para que esta negociasse com os estudantes em greve.

Quando acabou o ato, a multidão que assistia aos notáveis seguiu em passeata até a Reitoria e aguardou o resultado da reunião: estavam abertas as negociações.

Dois estudantes, dois professores da FFLCH e dois representantes da Reitoria se reuniram, então, para negociar a contratação de professores.

Após inúmeras reuniões, a Comissão Tripartite de Negociação deu seu parecer final: a Reitoria se comprometia a contratar 91 professores para a FFLCH até 2004, dividindo praticamente igualmente o número a ser concedido a cada um dos três anos. A Assembléia dos Estudantes da FFLCH, assim como a Congregação, não aceitou este número, afirmando ser insuficiente para as necessidades da Faculdade.

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Manifestação grevista durante as solenidades de 9 de julho na frente de Geraldo Alckmin

Mas a Reitoria deu as negociações como encerradas. Porém, mais um ato-surpresa dos estudantes colocou de novo o Vice-Reitor contra a parede (Melfi estava viajando pela França): durante as festividades do feriado de 9 de julho (Revolução Constitucionalista em São Paulo, em 1932), um grupo de estudantes chamou a atenção do Governador e candidato Geraldo Alckmin, que na frente de milhares de espectadores e da imprensa disse que receberia os grevistas.

Houve uma reunião, então, no Palácio dos Bandeirantes (sede do Governo Paulista), onde estavam presentes representantes dos estudantes e professores.

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"Por contraste visual, a greve continua!", resultado da Assembléia de 8 de Agosto

Alckmin afirmou inúmeras vezes não poder interceder devido à autonomia universitária (fato desmentido por membros da Comissão Jurídica da Greve), mas disse que mesmo assim pediria à Reitoria que reabrisse as negociações.

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Assembléia da História

A comissão voltou a se reunir, agora com mais representantes dos estudantes. Após mais inúmeras reuniões, o Reitor — de volta da França — passou a integrar a Comissão e deu a última proposta: 92 professores, sendo 68 ainda em 2002 e 24 no ano seguinte.

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Assembléia da Geografia

Os professores, através da Congregação da Faculdade, aceitaram a proposta e propuseram um calendário de retomada das aulas, o que gerou um racha entre os estudantes. Parte apoiava a ação dos docentes, enquanto outros eram contrários, tanto devido à proposta em si, quanto ao fato de a greve ser estudantil e não dos professores.

A tensão então passou a ser estimulada por parte dos estudantes de ambos os lados, intensificou-se a demonização do lado contrário. Aqueles que, após toda a greve, passaram a lutar pelo seu fim, juntaram-se a grupos que desde o começo eram contrários ao movimento e passaram a articular uma campanha dizendo que aqueles a favor da greve eram baderneiros, membros de partidos, vagabundos, etc. Já o grupo a favor da greve passou a dizer que todos os do lado contrário eram "pelegos".

O que ocorreu foi que no grupo contrário à continuidade da greve havia três tendências diferentes: aqueles que desde o começo eram contra ela, os que entendiam que por motivos políticos esta não devia mais continuar e, por fim, aqueles que achavam que a greve não tinha mais força interna para conquistar mais vitórias.

Houve duas Assembléias para que o grupo contra a greve conseguisse vencer. Na primeira, em 7 de agosto, a proposta de continuidade da greve venceu por contraste visual, em nova invasão da Av. Prof. Luciano Gualberto, conhecida como Fúria II.

Durante a semana que separou esta Assembléia da seguinte, ampla campanha entre os alunos buscou levantar o máximo de gente possível para ir votar contra a greve em nova Assembléia, chamando aquelas pessoas a favor da greve mais uma vez de baderneiros, preguiçosos, partidários e manipuladores.

Por fim, houve a derradeira Assembléia. Depois de uma semana com os docentes afirmando - e tentando, em parte — que voltariam a dar aulas, e com setores dos estudantes querendo o retorno das atividades em sala de aula, no dia 15 de agosto reuniram-se no prédio de História e Geografia aproximadamente 1.200 pessoas. Depois de horas de discussões e de contagem manual dos votos, saiu o resultado final da votação: favoráveis ao fim da greve, 637 pessoas. 511 votaram pela continuidade do movimento, e 28 de abstiveram. O resultado foi comemorado como uma vitória pelos favoráveis ao retorno às aulas, e como uma grande derrota pelo grupo contrário.

O Estadão acompanha a greve

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Alunos das Letras levaram faixas e narizes de palhaço à palestra do Diretor da FFLCH (Francis Henrik Aubert) na Bienal do Livro para alertar sobre a greve que começava

Renata Cafardo. Provavelmente até o começo da greve estudantil da FFLCH ninguém, ou muita pouca gente, havia ouvido falar desta repórter de O Estado de São Paulo. Depois da greve, seu nome era famoso e até seu rosto conhecido por aquelas pessoas que participaram mais ativamente do movimento. Ela a responsável pela ampla maioria das reportagens referentes à situação enfrentada pela Faculdade para o Estadão. Das trinta e oito reportagens e notas publicadas a respeito, vinte e quatro (63%) são suas, cinco (13%) de outros repórteres, e nove (23%) não possuem autoria identificada. Porém, se era ela quem fazia as reportagens, decerto não optava pela linha editorial adotada por estas e pelo jornal.

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Desvio improvisado na Av. Prof. Luciano Gualberto em decorrência da ocupação/festa Fúria

Pesquisando no site "http://www.estado.estadao.com.br", nota-se rapidamente a concentração dos textos em alguns momentos distintos: o começo, as movimentações depois do Ato com os Notáveis, e as duas últimas semanas do movimento.

Ao iniciar-se a greve e com a manifestação dos estudantes de Letras na Bienal do Livro, o jornal dá destaque ao ocorrido, trazendo citações que mostravam a indignação com a situação dos cursos na USP, o apoio do Diretor da FFLCH ao movimento e alguns dados informativos.

Enquanto isso, cita-se a Pró-Reitora de Graduação, Sonia Penin: "O nosso orçamento não permite mais que isso por enquanto" (OESP, 03/05/2002), que diz também que o problema da falta de professores é devido à falta de organização de sua administração — motivo defendido durante toda a greve.

De 8 de maio a 6 de junho não há uma única nota a respeito da greve. Em 7 de junho, então, surge um texto do Diretor da FFLCH defendendo a greve e explicando seus motivos (Docentes da FFLCH-USP, OESP, 07/06/2002).

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A Guarda Universitária acompanhava de perto os "baderneiros". No caso, dia 16 de maio

Há também uma matéria comentando sobre Fúria (a invasão à Av. Prof. Luciano Gualberto) e a proposta de 26 professores pela Comissão de Claros. Entre os estudantes, os dois lados são entrevistados. Enquanto explora-se o fato de a Universidade ser uma decepção aos estudantes e seus parentes ("Quando contei a situação para minha mãe, ela ficou horrorizada"), a reportagem deixa a entender que é uma minoria que apoia a greve entre os estudantes: "Se juntasse metade dos alunos aqui na frente, não caberia todas as 6 mil pessoas" (OESP, 07/06/2002).

No dia 8 de junho, dia posterior à invasão à aula do Vice-Reitor na FEA, surgem dois textos acerca do ocorrido. No primeiro, (Total desrespeito, OESP, 08/06/2002), escrito por Eliseu Martins, diretor da FEA, os alunos são descritos como "incivilizados" e "desrespeitosos" à figura do Vice-Reitor, da Faculdade, de seus docentes e discentes devido à tentativa de impedir a aula. O segundo texto do dia é uma matéria, assinada por Laura Knapp (Vice-reitor da USP abandona aula invadida por grevistas, OESP, 08/06/2002) onde mostra as opiniões contraditórias entre estudantes da FFLCH e o Vice-Reitor acerca do ocorrido na FEA. Para Nogueira da Cruz, "Eram 50, podem ser 70, ou 40, no corredor e vinham chegando outros (…) A classe é o lugar mais sagrado para mim, precisa ser preservado", ele referia-se também aos transtornos que enfrentou em 17 de maio ao sair do Anfiteatro de Geografia.

No dia seguinte, domingo, 9 de junho, O Estado de São Paulo lança um editorial comentando a greve. O texto começa errando (para cima) a reivindicação dos estudantes (de 259 passa a 350), e lembra que docentes dos Departamentos de Ciências Sociais eram contra a greve, juntamente com parte dos estudantes. Ao abordar o que chamou de "absurdo incidente ocorrido na Faculdade de Economia e Administração (FEA)", chama os estudantes de "baderneiros (com) manifestações de comportamento pouco civilizado, por parte de uma minoria de estudantes", o que teria feito "parte considerável dos alunos da FFLCH a pedir o fim da paralisação e a volta às aulas". Por fim, o editorial levanta a suspeita da greve ter sido manipulada por um grupo de docentes interessados na eleição para Diretor da Faculdade. (A greve na USP, OESP, 09/06/2002).

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Reportagem publicada na Folha em 6 de Junho convocava os alunos para uma "reunião" com os professores das Ciências Sociais. Era uma articulação que quase acabou prematuramente com a greve.

Sem embasar suas acusações em dados, não confirmados nem por suas próprias reportagens, O Estado de São Paulo mostra sua opinião com relação ao movimento, "perguntam se a greve - e a possibilidade de perda do semestre — é o melhor método para solucionar as graves dificuldades da FFLCH". Tal linha será seguida até o final do movimento, já em meados de agosto.

No dia 13 de junho, manchete afirma "USP culpa direção de faculdade pela crise". Lendo a matéria, percebe-se que na realidade é o Reitor quem afirma que os problemas da FFLCH restringem-se à má administração interna na solicitação de novas contratações, afirmando também que é preciso otimizar a utilização dos docentes: "Precisamos utilizar os docentes o melhor possível", e que a solicitação por 259 professores por parte dos estudantes não é séria. Segundo a matéria, "Ele disse que não aceita negociar diretamente com os alunos, como propôs a diretoria da FFLCH", sem dar os motivos para tal posição (USP culpa direção de faculdade pela crise, OESP, 13/06/2002).

Quando a discussão sobre a greve parece esquentar nas páginas do Estadão, surge uma reportagem com manchete chamativa: "Assembléia aprova 1.700 cargos de professores para a USP" (OESP, 14/06/2002). Para quem apenas lê a manchete, parece que todos os problemas seriam resolvidos. Mera ilusão, afinal a leitura atenta do texto mostra que na realidade foram abertas vagas para concursos acadêmicos, que são em sua ampla maioria preenchidos pelos professores que já são da casa e desejam subir na carreira.

Em 19 de junho, o Vice-Reitor, Hélio Nogueira da Cruz, escreve ao Estado "A cronologia da crise na FFLCH" (OESP, 19/06/2002), defendendo com números a proposta da Comissão de Claros: a Faculdade não sabe solicitar novos professores, por isso está nesta situação atual: "Diante das variações das demandas, a Comissão de Claros viu-se obrigada a fazer estudo ainda mais aprofundado do assunto, colhendo informações adicionais oriundas de diferentes fontes", "Paralelamente, os alunos da FFLCH realizavam estudo utilizando critérios discutíveis e baseado em dados ainda insuficientes, que concluiu pela solicitação de 259 claros, um número consideravelmente superior aos pedidos enviados pela unidade, aos encontrados pelos trabalhos da Comissão de Claros e às concessões feitas anualmente para toda a universidade, da ordem de 200 claros docentes", "não poderá haver uma solução de emergência se a unidade mantiver a morosidade no preenchimento dos claros docentes. Dos 11 claros concedidos em 2001, somente um foi preenchido até hoje". O Vice-Reitor defende ainda que as solicitações inchariam o orçamento, que é baseado no dinheiro público.

"Dissidência ameaça futuro de greve na USP". Com esta manchete, o Estadão alerta seus leitores ao fato de que a greve, que já durava mais de 40 dias, era questionada pelos chefes dos departamentos das Ciências Sociais, com citação de Lisias Negrão, da Sociologia: "(a greve) já conseguiu o que tinha de conseguir" (Dissidência ameaça futuro de greve na USP, OESP, 19/06/2002). Era uma convocação aos estudantes para retornarem à Faculdade, se não quisessem perder o Semestre. Nos dias que se seguiram, professores daqueles departamentos tentaram voltar às aulas e quase houve violência entre os grupos.

No dia seguinte, quinta-feira, 20 de junho, matéria mostra que houve o "Encontro com os Notáveis", e que as negociações entre os estudantes e a Reitoria estavam abertas, ao contrário do que Adolfo Melfi havia dito exatamente uma semana antes ("Ele disse que não aceita negociar diretamente com os alunos, como propôs a diretoria da FFLCH" (USP culpa direção de faculdade pela crise, OESP, 13/06/2002).

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"Jovens morreram pela Constituição. Quantos deverão morrer pela educação?", faixa levada à manifestação em 9 de julho

Em 24 de junho, os professores Eunice Durham e José Goldemberg escrevem (Falta de professores na USP, OESP, 24/06/2002) defendendo a greve, lembrando que a situação atual é um reflexo da pressão das Universidades Particulares por professores com grau de excelência e lembrando, por outro lado, que o maior problema é a questão previdenciária, com aposentadorias precoces e salário integral.

Quatro dias depois, Francisco Javier Hernandez Blazquez, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP responde aos professores (Aposentados da USP, OESP, 28/06/2002), questionando que o pouco tempo de aposentadoria seja um ponto contra a pesquisa na USP e a favor das Universidades Particulares, afirmando que aquelas pessoas se aposentariam de qualquer maneira e que, fazendo isso, colaboram para repor os quadros da Universidade por gente nova, com pensamento mais moderno.

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Geraldo Alckmin, cercado de policiais e seguranças, conversa com estudantes grevistas

Em 3 de julho, é publicado o resultado dos trabalhos da Comissão de Negociação: 91 professores até 2004. O texto mostra a opinião do Diretor da FFLCH, para quem "É algo inédito, nunca houve uma alocação de professores desse porte". Já para Antônio David, representante dos estudantes, "É ainda insuficiente para a faculdade ficar a pleno vapor" (USP oferece 91 professores para pôr fim à greve, OESP, 03/07/2002).

Quatro e cinco de julho são as datas de reportagens sobre a Assembléia que não ocorreu, "por problemas na organização" (Decisão sobre greve na USP ficou para hoje, OESP, 04/07/2002) e sobre a decisão no dia seguinte, quando optou-se pela continuidade no movimento.

Constrangimento. É assim que a reportagem descreve a situação de Geraldo Alckmin, governador, e candidato à reeleição, do Estado de São Paulo, diante da manifestação dos estudantes da FFLCH durante as solenidades de 9 de julho, mostrando que as pessoas que assistiram a tudo não entenderam do que se tratava, e ainda: "Não sei se aqui é o lugar mais apropriado, mas eles têm de ter liberdade", como afirmou uma costureira (Alckmin enfrenta ato de alunos da FFLCH, OESP, 10/07/2002).

No dia seguinte, houve a reunião entre Alckmin e os estudantes, e o governador tentou explorar politicamente a situação embaraçosa na qual foi colocado: "o governador, explicando que fazia parte do movimento estudantil quando cursava medicina". Hélio Nogueira da Cruz, Vice-Reitor, diz neste dia que "A negociação jamais foi interrompida." (OESP, 11/07/2002) contradizendo o que o representante da Reitoria, Luiz Nunes, Pró-Reitor de Pesquisa, havia dito em 3 de julho: "Isso é o máximo que podemos oferecer e agora esperamos que a oferta seja aceita" (USP oferece 91 professores para pôr fim à greve, OESP, 03/07/2002).

Em matéria no mesmo dia (Nova reunião hoje busca solução para a crise, OESP, 22/07/2002), o jornal volta a fazer o terrorismo acerca do cancelamento do semestre, "O diretor da FFLCH, Francis Aubert, que está deixando o cargo, já sugeriu cancelar o primeiro semestre ou organizar aulas ininterruptas até o carnaval de 2003".

No dia seguinte, a reportagem mostra que a falta de professores acaba criando um ciclo vicioso, no qual as salas ficam lotadas, alunos não conseguem vagas e ficam mais tempo para se formar. Assim, há mais gente para assistir as mesmas aulas, que ficam lotadas, alunos ficam de fora e o ciclo se renova (USP não encontra saída para greve, OESP, 23/07/2002).

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13 de Agosto: professores e estudantes das Letras discutem o andamento da greve

A primeira interferência direta do Reitor na greve é o destaque de reportagens em 26 (Reitor da USP vai negociar greve com alunos, OESP, 26/07/2002) e 29 de julho (Pela primeira vez, reitor da USP vai negociar com alunos grevistas, OESP, 29/07/2002). A reportagem mostra-se otimista ao futuro das negociações, com a interferência de Melfi, faz um breve histórico das reivindicações e das negociações - lembrando o número não aceito de 91 — e que "Desde o início do movimento, cerca de 5% dos mais de 12 mil alunos da unidade têm participado das assembléias".

A resposta de Melfi à greve vem em 30 de julho, e a reportagem lembra que apesar de ser apenas um professor a mais, o fundamental é que os 92 virão em dois e não mais em três anos, citando por fim uma frase do Reitor mostrando que mais uma vez dava as negociações por encerradas: "Qualquer proposta alternativa que a FFLCH queira fazer a partir de agora terá de ser submetida ao órgão máximo da USP, o Conselho Universitário " (USP: reitor faz proposta para acabar com greve, OESP, 30/07/2002).

"Professores da USP convocam alunos para voltar à faculdade", "Depois das férias, alunos voltam a discutir greve", "Cursos já começam a aprovar fim da greve na USP", "Em assembléia dividida, alunos da USP decidem manter a greve", "Aulas vão recomeçar na FFLCH, mesmo com alunos em greve", "Professores voltam a dar aulas hoje na FFLCH", "Alunos em greve e professores debatem na USP" e "Alunos da USP decidem pelo fim da greve em assembléia". São estas as manchetes das reportagens sobre a greve no Estadão nas duas últimas semanas do movimento (01 a 15/07/2002).

As manchetes destas reportagens explicam a si mesmas. O Estadão deixou de lado a opção pelo jornalismo "neutro" para fazer campanha para os alunos voltarem à sala de aula, defendendo a proposta da Reitoria e explorando o fim do apoio dos professores ao movimento, "de apenas 4% dos estudantes", e que este inclusive estava rachado, com alunos questionando a legitimidade das Assembléias e muitos afirmando que se os professores voltassem às salas de aula, os acompanhariam.

Ao acabar a greve, como dizia a manchete de 16 de agosto, "Alunos da FFLCH terão agora de se adaptar ao novo calendário". Afinal, quem mandou entrarem em greve?

Qual, então, o projeto que a greve evidenciou?

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Curiosamente, somente depois da ocupação da Avenida o Estadão passou a acompanhar a greve

Se por um lado, o Estadão mostrou-se relativamente favorável às solicitações grevistas — dizendo inclusive ser impossível alguém ser contra — boicotou a cobertura do movimento durante seu primeiro mês, quando as manifestações eram de cunho cultural e informativo, com aulas públicas e declamações de poesias.

Somente quando o movimento grevista começou a se radicalizar o jornal passou a cobri-lo. Depois de um mês, percebeu-se que aquele movimento não era "fogo de palha" ou "brincadeira de criança", como foi citado por membros da Reitoria. Mas, o jornal perdeu a oportunidade de apoiar o movimento enquanto este era pacífico.

A leitura do editorial publicado no dia 9 de junho mostra a visão de O Estado de São Paulo sobre a greve estudantil da FFLCH: apoia suas reivindicações, mas é contra seus métodos. Porém, além de tachar os integrantes do movimento de "incivilizados" e "baderneiros", o jornal também fez uma grande campanha para que os alunos não grevistas fossem às Assembléias votar pelo fim do movimento.

Dizendo que o movimento é uma manipulação eleitoreira, questionando a legitimidade das Assembléias, explorando os rachas internos, a falta de organização, a intenção dos professores das Ciências Sociais em voltar às aulas e explorando o medo da perda do semestre e das férias, O Estado de São Paulo tenta boicotar o movimento, parecendo não ter coragem para ser contra reivindicações tão fortes como as dos grevistas. Mas também deixou transparecer seus projetos àquela Universidade que ainda considera sua filha.

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"Sejamos realistas, peçamos o impossível". A famosa frase de maio de 68 na França é relembrada nos muros da FFLCH.

Se em parte seu projeto realmente funcionou com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, ex-aluno e professor da FFLCH, à Presidência, e com a sedimentação deste modelo Universitário para o Brasil durante décadas, por outro lado a "elite pensante" e a "ciência para iluminar o Brasil" parecer ter fugido, em parte, do modelo desejado pelo grupo liberal do Estadão, formando intelectuais que questionam o projeto liberal para o Brasil e propõem outros em seu lugar.

Isto não significa necessariamente que agora tal jornal passaria a defender o final da FFLCH — em nenhum momento fez isso, inclusive apoiou as reivindicações - mas os rumos tomados pela USP e pela Faculdade, e os questionamentos dos novos tempos potencializaram algumas tendências que já vinham escondidas dentro do decreto de fundação da USP.

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"Resistir e Ocupar" foi o lema da "Casa dos Grevistas", acampamento de mais de 30 barracas na frente da FFLCH, eventualmente deslocado para a Av. Prof. Luciano Gualberto

O Estadão atualmente defende a permanência das fundações de caráter privado dentro da Universidade e uma maior aproximação entre esta Universidade e as Particulares.

A bandeira do Estado mínimo é uma das bases do pensamento liberal, o que justifica a defesa das Fundações e da busca de financiamento externo da USP. Desde sua criação, esta deveria ser uma meta da Universidade: "Art. 24º - A Universidade de São Paulo tem personalidade jurídica, autonomia científica, didática e administrativa, nos limites do presente decreto e, uma vez constituído um patrimônio com cuja renda se mantenha, terá completa autonomia econômica e financeira".

O Estado de São Paulo não apresenta em nenhum momento um discurso contraditório. Enquanto apoia as reivindicações dos grevistas por uma Faculdade de Filosofia decente, questiona a forma na qual isto ocorre, fora da burocracia institucional e com questionamento da autoridade. O Estadão quer, ainda, uma Universidade para formar a elite dirigente e para isto vê como fundamental a existência da FFLCH, desde que esta mantenha-se dentro dos padrões liberais estabelecidos e não impeça a USP de seguir o caminho trilhado quase setenta anos atrás: a construção de um patrimônio próprio para obter a independência econômica, mas não moral, do Estado, liberal.

BIBLIOGRAFIA

[1] O Estado de São Paulo, edições de 29 de abril a 20 de agosto de 2002 na forma eletrônica disponível na íntegra na internet: http://www.estado.estadao.com.br

[2] Decreto Nº 6.283, de 25 de Janeiro de 1934 in FÁVERO, Maria de Lourdes A.: Universidade & Poder. Achiamé, Rio de Janeiro, 1980.

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