Psicologia e Sociedade — Revista da Associação Brasileira de PsicologIa Social — ABRAPSO — Ano V. N° 8 — Novembro/89 - Março/90
Por Keila Deslandes1
Antes de mais, a idéia de realizarmos um trabalho de intervenção psicossociológica traz consigo a perspectiva de mudança.
PAGES [6] irá denominar intervenção psicossociológica a uma "metodologia geral da mudança humana", tanto da prática da mudança, quanto da pesquisa. Assim, começamos a nos indagar sobre o sentido da mudança na intervenção psicossociológica.
Nos termos de DUBOST {1987), ao teorizarmos sobre o assunto podemos distinguir pelo menos seis momentos, entre os quais citamos o da teoria do objeto e o da teoria da mudança social.
O primeiro nos interessará uma vez que a definição do objeto numa prática de intervenção psicossociológica dirá também da prática dos psicossociólogos envolvidos. É a idéia de generatividade: a produção produz um produtor que a produz (MORIN, 1981). A forma como o psicossociólogo aborda seu objeto de estudo diz tanto do objeto quanto do próprio psicossociólogo.
O profissional comprometido com a mudança social terá cuidado em perceber o objeto de sua intervenção não apenas como um produto instável, mutáve1 e continuamente em formação, mas como um trabalho que só se realiza na interação dos sujeitos de pesquisa/intervenção — entre quem, obviamente, ele se inclui.
Caso contrário, no não comprometimento com a mudança ou, na manutenção do "status quo", pensamos encontrar um objeto definido aprioristicamente, sobre o qual se impõe novas normas de hetero-organização.
A definição do objeto e a relevância atribuída a determinados fenômenos na construção dos dados dirá também dos objetivos da prática de intervenção, e será mais um elemento para explicitarmos o objetivo da mudança.
Quanto à teoria da mudança social, o segundo momento por nós relevado da teorização de Dubost, discorremos mais detalhadamente.
Na teoria da mudança social nos depararemos de frente com a necessidade de esclarecermos as diversas e insuficientes definições da palavra mudança. Segundo Dubost, a literatura especializada tem se dividido entre:
- mudança como desenvolvimento: onde se busca a retomada de um funcionamento social de acordo com parâmetros anteriormente estabelecidos;
- mudança relacionada ao tema da modernização científica e tecnológica: onde a busca é de uma organização mais eficaz e funcional;
- mudança definida segundo problemas de adaptação;
- o tema da mudança inscrito numa análise crítica da evolução geral da sociedade, e;
- mudança como possibilidade política.
Dito isto, apesar de tentados a nos enveredar pela análise crítica da evolução geral da sociedade, optaremos por discorrer sobre a mudança como possibilidade política. Pensamos, assim, poder dissolver enunciados ideológicos que postulam sobre o imobilismo organizacional da sociedade civil, especialmente nas camadas de baixa renda da população. Referimo-nos a afirmações que desconhecem a existência e a realidade dos movimentos sociais e, nesse ignorar, refutam a possibilidade de uma organização autônoma do social, crendo, por intermédio do preconceito, numa incapacidade cultural e intelectual dos povos se autogerirem.
Pretendemos, neste trabalho, adotar a idéia de autogestão como possibilidade política de mudança. Assim, discutiremos pelo menos um momento onde ela tenha historicamente ocorrido, e daremos exemplos de outros. Em seguida, pensamos poder abordar teoricamente as viabilidades ontológicas de seu aparecimento e, finalmente, fazer uma aproximação entre métodos de abordagem psicossociológica e autogestão.
A Autogestão
A palavra autogestão só aparece no vocabulário francês a partir dos anos 60. "Autogestion" é a tradução literal da palavra que designa a experiência político-econômico-social da Iugoslávia de Tito, "samoupravlje". Experiências autogestionárias já haviam ocorrido ante- riormente em outras partes do mundo (lembre-se da Comuna de Paris, da Colônia cecília, entre outras).
De acordo com DUPUY (1980), nas sociedades capitalistas, as palavras de ordem da corrente política autogestionária são: "redução drástica da hetero-regulação centralizada que é o poder do Estado; re-
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forço da sociedade civil". Entenderemos por autogestionários os processos que adotem tais perspectivas, seja no nível micro ou macrossociológico.
A nível teórico ficaremos satisfeitos em fundamentar a auto-
gestão, de acordo com GUILLERM e BOURDET (1976), no princípio de igualdade das pessoas: uma vez que não há um homem que seja mais homem que o outro, todos os homens são iguais, cada homem traz consigo a humanidade inteira e, a sorte da humanidade está nas mãos de todos os homens.
Naturalmente, estamos falando de uma igualdade de fato e de direito, que não é sinônima de homogeneidade. As diferenças de identidade são não só reconhecidas, como respeitadas e incentivadas.
Deste princípio, surge um segundo momento da fundamentação teórica da autogestão que é a forma de organização. A organização social e politica não pode resultar senão de um acordo entre iguais. Assim, produto da autonomia, da liberdade e da vontade própria destes homens, não será imposta por quem quer que seja. Pelo contrário, nesta organização as imposições serão excluídas.
Para os objetivos deste estudo falaremos de experiências autogestionárias de nível microssociológico, acontecidas no interior da instituição Universidade Federal de Minas Gerais.
Pois bem.
De cunho autogestionário sabemos da existência, na UFMG, pelo menos das conquistas das creches (exceto a Creche Campus Pampulha, construída segundo o planejamento universitário), e da moradia estudantil sobre que falaremos.
Ligadas à UFMG, há duas moradias estudantis. Uma, situada no Campus Saúde, leva o nome do antigo prédio, Borges da Costa .. A segunda, no bairro Santo Agostinho, é chamada MOFUCE - Movimento pró-Construção da Casa do Estudante.
Houve uma outra … a Casa da VOVÓ (sobre isso, consulte
BOMFIM e MATA MACHADO, Notas para a discussão do tema: "Moradia se conquista na luta").
Das duas existentes, falaremos especificadamente sobre a Borges da Costa, experiência mais antiga.
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A instituição universitária, pública e federal de Minas Gerais, como outras Universidades do mundo inteiro, teve preocupação com o alojamento de seus alunos manifestada com seu projeto arquitetônico.
No entanto, tal preocupação não saiu do papel, uma vez que o prédio construído com tal proposta inicial foi destinado à Prefeitura da cidade universitária.
No ano de 1980, alunos e não-alunos desta Universidade demonstram real preocupação com a existência da moradia universitária e tomam com esta finalidade o antigo hospital Borges da Costa, situado na área do Campus da Faculdade de Medicina. O então prêdio abandonado pertence ao patrimônio da UFMG.
A primeira característica autogestionária é evidente: uma facção do Estado, representada pela burocracia universitária, é enfraquecido - e isso é evidente na tentativa que faz de se fortalecer, tentando retirar os "invasores". Uma facção da sociedade civil, apresentada na forma de "invasora", é fortalecida.
A tomada é consolidada. E, uma vez Ser conquista exige, como
condição de se manter, responsabilidade para com seu projeto autogestionário. Bem entendido: para manter-se autonomamente, na instituição universitária, autogerida por seus moradores. E, é claro, nenhuma casa sobrevive sem dinheiro … Autogerir-se significa também gerir os próprios bens, o que implica em tempo e trabalho. A Moradia Estudantil não consegue dotação orçamentária própria nem nenhuma forma de gestação independente de recursos.
Daí que a casa Borges da Costa vai gradualmente incorporando a instituição universitária: dos mutirões de limpeza, passa a ter faxineiros contratados (e pagos) pela Universidade. Além de água, luz e porteiros.
Mas é tudo. A autogestão é frustrada, o paternalismo instalado, a Universidade salva. Mantém um álibi de moradia para seus alunos, ainda que em condição "oficial e temporária" (leia-se precária: quanto à pintura das paredes, à instalação de telefone, serviço de lavanderia, áreas mínimas de lazer e esporte) .
Até hoje não foi construída uma moradia estudantil que ofereça infra-estrutura necessária à vida universitária.
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VIABILIDADES ONTOLÓGICAS DA AUTOGESTÃO
Neste item gostariamos de pensar o homem tal como o pensa a teoria autogestionária.
Como haviamos dito, a autogestão utiliza-se do princípio da igualdade entre os homens - o que não significa homogeneização das diferenças e identidades.
A viabilidade ontológica da igualdade podemos buscá-la desde Descartes, e até antes; mas, desde Descartes quando, valendo-se do conceito matemático de limite diz ser a vontade do homem infinita e ilimitadamente desejante. Assim, dado que nenhum infinito pode ser maior que o outro, descobre a razão profunda da igualdade das pessoas.
Mas, não julguemos que o pensamento descartesiano é ingênuo e desconheço as impossibilidades materiais de realização do infinito humano.
Um outro autor, este bem mais comprometido com a redação de um projeto social, que se preocupa com a igualdade humana, é Paulo Freire.
Na Pedagogia do Oprimido, FREIRE (1983) vê que os homens, tanto oprimidos quanto opressores, compartilham uma desumanização que os impede de viver humanamente. Esta desumanização é, apesar de concretamente real, apenas uma de suas viabilidades ontológicas. Ainda que se realize num contexto real, concreto e objetivo, pode ser transformada.
Como metodologia da mudança, Freire postula a idéia da praxis libertadora onde, inseridos criticamente no mundo, os homens transformam-se pela reflexão e pela ação. E, ainda que legue todo o trabalho da praxis libertadora aos oprimidos: "E aí está a grande tarefa humanistica e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores", reconhece ser a desumanização uma realidade tanto destes, quanto dos opressores.
Deste modo, concluímos haver em Freire uma natureza humana diferente da que se manifesta na realidade da opressão. "Na verdade, se admitissemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teriamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero".
E esta natureza humana, que diz de uma igualdade humana, é mesmo a da autonomia, da responsabilidade - sem o que não há liberda-
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de - e da liberdade, como busca permanente. Eis aí seu projeto ontológico, neste sentido, consonante ao da autogestão.
APROXIMAÇÕES ENTRE PSICOSSOCIOLOGIA E AUTOGESTÃO
Iniciamos este trabalho entendendo por intervenção psicossociológica a uma metodologia geral da mudança humana, e prosseguimos mostrando como o tema da mudança está inscrito na teorização sobre este assunto. Em seguida, optamos por adotar como forma de mudança social a autogestão e localizamos um momento histórico onde possamos poder encontrar indícios de sua realização (ainda que, enquanto tal, mal sucedida).
Passamos assim a viabilizá-la teoricamente no plano ontológico.
Finalmente, gostaríamos de saber como alguns temas de psicologia têm trabalhado o tema da mudança de forma a construir na "ontologia autogestionária", ou seja, na busca da igualdade e da humanização.
Para tanto, procuraremos em Lewin, na Psicanálise, na Análise Institucional e na Psicossociologia francesa.
O tema da mudança tem sido recorrente nos estudos psicossociológicos. Um exemplo clássico, Kurt Lewin, nos anos da 2a. Guerra rompe radicalmente com a metodologia até então empregada. Seu objetivo é trabalhar os fenômenos psicológicos no próprio campo de ação onde eles acontecem.
É a chamada pesquisa-ação. A realidade já pode ser revelada aos olhos científicos de maneira dinâmica.
O termo dinâmica de grupos também aparece.
Para Lewin, a pesquisa em Psicologia Social deve originar-se a partir de uma situação social concreta a modificar. E é a partir dos pequenos grupos, células sociais brutas, que é possível ao psicólogo social atuar cientificamente. Sua metodologia da mudança é a inserção, no meio social, de indivíduos com "formação especial" e capazes de influenciar os demais. Seriam eles "átomos sociais radioativos", ou o que Lewin chama de "pequenos grupos-testemunha".
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A igualdade humana aqui é aquela proporcionada pela democracia.
Quanto à psicanálise, se pensarmos alcançar uma mudança de cunho social buscando em Freud uma teoria dos grupos, ficaremos frustrados: ele certamente não a tem.
COSTA (1989) fara um estudo detalhado sobre os textos freudianos mais relacionados ao assunto (Tótem e Tabu; Psicologia das Massas e Análise do Eu; O Futuro de uma Ilusão; O Mal-Estar na Cultura; e, Moisés e o Monoteísmo), concluindo que, para uma abordagem psicanalítica dos grupos terá que se remeter a urna leitura de Lacan, especialmente sobre a questão do imaginário. Só assim pensa conseguir "dar conta da variação cultural das identidades subjetivas, sem contradizer a hipótese da invariância de certas estruturas psíquicas do sujeito". Podemos vir a tratar as diferentes camadas sociais pela Psicanálise mas, falar de mudança social aqui ainda é prematuro.
FREUD (1900) diferencia desejo de necessidade. O primeiro está indissoluvelmente ligado a traços mnésicos e encontra sua realização (Erfulllung) na reprodução alucinatória das percepções tornadas sinais dessa satisfação (da satisfação das necessidades). A segunda se satisfaz numa ação específica e em um objeto adequado.
Na prática de intervenção psicossociológica temos constatado que podemos vir a nos deparar com "homens de necessidade", i.é, homens em elevado estado de carência e desigualdade social (segundo definição de Hannah Arendt).
O homem só pode aparecer em liberdade, e nisso está a emergência do sujeito de desejo, quando sai da situação em que nada mais pode ser que "homem de necessidade".
Diz Costa: "Nas portas da fome, da miséria, da dor e da morte, só podemos pensar em sobreviver".
Neste sentido, a Análise Institucional avança, ocupando-se da transformação do grupo-objeto (aquele que é ouvido) em grupo-sujeito (aquele que enuncia). Ou seja, ocupando-se da emergência do sujeito do desejo.
Para Lapassade e Lourau, a AI é sempre ligada à idéia de provocação corno princípio de contestação e redefinição de papéis. Também está ligada ao conceito de transversalidade como máxima comunicação, em
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consonância com a regra fundamental estabelecida por Freud aos anali- sandos: tudo-dizer e livremente associar.
Assim busca-se reconhecer e superar tanto a verticalidade das relações formais (organograma), quanto a horizontalidade das informais (sociograma).
A transversalidade é o lugar do sujeito inconsciente do grupo, o suporte de seu desejo: é o próprio objeto de estudo do grupo sujeito e condição indispensável para que ele tenha a palavra plena de si mesmo.
Uma outra possibilidade é proposta por PAGES (1982). Sua formulação sofre influência da pesquisa-ativa lewiniana, da psicanálise e da psicossociologia francesa. Se a seguirmos, trabalharemos de forma a facilitar a intercomunicação grupal na busca da expressão própria de cada um, o que favorece a desalienação e desidentificação coletiva e também significa a emergência do sujeito.
Trata-se de um processo simultâneo de explicitação e transformação, um processo coletivo e espontâneo. A postura que aparece ao psicólogo social é a do pesquisador clínico, aquele que faz parte integrante da prática de mudança, dispondo-se aos riscos que ela implica.
Como metodologia, pages fala da quebra das defesas, da expressão autêntica de si, da espontaneidade e até, de uma certa ingenuidade por parte do psicossociólogo, como forma de participação liberta dos grilhões acadêmicos.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Entendemos que certos trabalhos de intervenção psicossociológica têm se preocupado com o tema da mudança no sentido da ontologia autogestionária e, assim, criado formas de viabilizá-las.
Diz MATA MACHADO (1983): "Parece que a prática da Psicologia Social reproduz a estrutura social, está a serviço da classe dominante, internalizou a ideologia burguesa. - Apenas parece. (…) Todo o tempo em que serviu aos senhores, o psicólogo social ouviu aos subordinados, liberou-lhes a palavra, fez de conta que era igual a eles e que todos nos grupos eram iguais. (…)
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Na sua prática, o psicólogo social vai acompanhando a mudança, facilitando, fazendo, buscando …"
Este trabalho é dedicado a Regina Godoy.