Blog da Ocupação — jul-2007
Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves1
No momento impreciso entre o amanhã e o hoje, de madrugada, daqui há pouco, os alarmes de relógios elétricos despertam na cidade que, como se costuma dizer, nunca dorme. Então o barulho incessante de veículos em movimento na marginal aumenta seu volume e o tumultuar de pessoas esparrama pelas ruas. O sentido do cotidiano parece já estar dado, naturalmente; segue-o, apenas, com semblante impassível. Afinal, é necessário trabalhar, comer, viver, assim como os povos primitivos saíam para a caçada… Os funcionários da Universidade de São Paulo chegam devagar, aos poucos, e é muito cedo ainda; chegam em grupos ou solitários — cara amassada de sono — de todos pontos, lados e lugares. Aperta-se um botão aqui, outro ali, abaixa-se e levanta uma alavanca, e a engrenagem se move; toca-se uma campainha e os computadores, rangendo suas entranhas, começam a trabalhar… Mas esperem! Ouçam o clamor vindo das assembléias dos estudantes: Ocupa! Ocupa! Ocupa! Ocupa!
Todavia, quando a Ocupação da REItoria2 acabar tudo voltará ao normal; seus protagonistas, personagens que se tornaram heróis ou vilões, serão suplantados pelo ritmo implacável da rotina universitária: bip! bip! bip! bip! O ruído irritante do despertador, atrapalhando nossos sonhos, bip! bip! bip! bip: hora de acordar, vestir, ir para a Faculdade; ônibus lotado, as grosserias do dia a dia; filas no “Bandeijão”, funcionários e alunos de mau-humor; depois, assistir aula, em que a única atividade consiste numa passividade; voltar para casa e recomeçar tudo de novo amanhã. Por isso, quando a Ocupação da REItoria acabar voltaremos a passar despercebidos uns pelos outros na noite eterna em que todos os gatos são pardos. Foram essas idéias que tive quando me dirigia para as grades de aço entortadas como plástico da única entrada-saída da Ocupação, controlada por estudantes, como eu. Era isto que se passava pelos meus pensamentos, daí a necessidade da retórica do início, para tentar colocar nos devidos termos minhas reflexões sobre aquele momento: esboçamos o esforço de tentar sermos sujeitos de um processo, através da ruptura de diversas formas estratégicas de sujeição, e, quando tudo acabar, retornaremos à condição normal de meros objetos, coisas, mercadorias. Talvez esses meus pensamentos exprimissem uma pretensão sem tamanho. Sem dúvida. Mas a greve seguiu o caminho aberto pela Ocupação. Todo sistema nervoso da Universidade parou, os funcionários não foram trabalhar, os professores não foram trabalhar e até mesmo o tempo de dentro do campus parou: o relógio da Praça do Relógio também foi ocupado e seus ponteiros infalíveis, desativados. Aliás, a Torre do Relógio virou ponto turístico com seus cinqüenta metros e escadas vertiginosamente estreitas; a qualquer instante podia se ouvir o dobrar de seu sino, provavelmente alguém que inventava seu próprio tempo. A tomada do relógio podia ser interpretada, pelos mais entusiasmados, como uma insurgência do tempo concreto contra o tempo abstrato? Esta pergunta e toda e qualquer afirmação com teor pretensioso só podiam ser respondidas, com muitas ressalvas, no calor dos acontecimentos evanescentes do dia a dia da Ocupação. Suspendo, assim, todo e qualquer juízo e deixo para quem quiser responder estas e tantas outras questões conforme bem entender. Não foi esta a tarefa que me propus mas descrever as minhas impressões a respeito dos fatos da Ocupação. Portanto, não vou me preocupar neste texto com a ordem cronológica nem detalhes relativos à negociação política ou matérias publicadas pela imprensa, etc. Vou me deter apenas em descrever acerca dos acontecimentos como eles apareceram para mim, sem método sem investigação, contarei somente com a minha memória. No final, farei algumas considerações pessoais.
Momentos depois da ocupação, eu fui avisado por um colega: “ocuparam a reitoria”. Imediatamente, fui para lá. Passei pela portaria, onde se encontravam estudantes que me solicitaram a minha identificação de aluno; vi a grade entortada da portaria, segui pelo saguão, e cheguei num salão que fica à esquerda de quem entra. Muita gente se encontrava aí, num grande alvoroço e numa confusão de andares sem sentidos. Uma garota filmava tudo com uma câmera profissional. Outros tiravam fotos e filmavam com celulares. Uma plenária era improvisada ali na hora. Andei para lá e para cá, pensei, “bom, e agora?”. Passei então a tentar prestar atenção nas falas dos que discursavam. De repente, uma movimentação brusca atrás de mim; algumas pessoas tentavam impedir que a tal garota da câmera filmasse. Ela se identificou: “gente, sou do PCO!” Ainda assim, uns quatro ou cinco avançavam sobre ela com certa truculência. Ela se defendeu dizendo que se a Rede Globo e a Record entraram e filmaram todos, que se colocaram de costas, porque ela não podia. O caso acabou indo parar na plenária. Um rapaz que já monopolizava o microfone há algum tempo desandou a explicar os motivos dos porquês não seria bom a filmagem: “essa fita pode cair em mãos erradas, algumas pessoas podem ser reconhecidas e punidas…” Algumas pessoas gritaram, “tira a fita!”, e avançaram. Um outro tentou falar, houve um tumulto, então ele gritou: “só você fala! Você é o rei!” Finalmente passaram o microfone para ele, que argumentou dizendo: “esse registro é interno ao PCO”. Decidiu-se então votar em plenária essa pendenga. A proposta em favor da filmagem foi repelida. Decisão que achei incoerente, pois muita gente tirava fotos e filmava com celulares e micro-câmeras digitais. A discussão prolongou-se, tratava-se de saber agora se seria permitido, tanto a imprensa oficial como a alternativa, registrar aquele momento. Votou-se novamente, e toda imprensa foi, a princípio, proibida de entrar na REItoria ocupada. Depois houve um certo temor em caso de a polícia invadir a REItoria e agir com repressão. Conjeturei comigo mesmo se não seria bom se uma câmera de vídeo estivesse disponível e, com ela, coibisse os corriqueiros abusos cometidos pela violência policial. Todavia, a assembléia é soberana…
Alguns estudantes do Mackenzie e da PUC também estavam lá, na Ocupação. Novamente, outra confusão. Desta vez, o pessoal da AJR-PCO, reunidos no saguão, protestavam inconformados, diziam que militantes da AJR, sabidamente estudantes de outras faculdades, estavam sendo impedidos de entrar. Fui para a portaria e escutei um bate-boca: “você sabe que eu sou da faculdade tal…” Resolvi sair, não sei qual foi o desfecho, mas tenho a impressão que todo mundo acabou entrando, não sei. Coisa de instantes e lembrei-me de uma militante da AJR que meses antes me entregou um panfleto3 e acusou o PSTU de se posicionar contra a greve. Algum minutos depois, voltei para a REItoria ocupada, e desta vez percebi que alguns guardas da universidade com uniformes azuis circulavam no saguão. Dirigi-me para o local anterior. Desta vez, ocorria uma reunião numa sala com janelas e paredes de vidro ao lado de um jardim, e lá, um homem de barba e paletó e gravata rodeado por estudantes falava pausadamente. Um dos estudantes usava um nariz de palhaço e gravava toda a conversa. Reconheci, dentro da sala, pessoas do PSTU, Psol, AJR, LER-QI , e outros. No jardim, muita gente falava, opiniões desencontradas. “É o Lajolo, diziam, o vice-reitor”.Distraidamente, passei a bater num suporte de ferro da janela, mas, de dentro, uma garota pediu silêncio. Depois circulei pela reitoria e fui embora muito mal impressionado, principalmente com o lance da câmera.
Voltei no sábado. Fiquei a madrugada inteira na REItoria assistindo filmes que eram projetados na parede do salão principal. Num outro salão, em sentido oposto a este, muitas pessoas dormiam enroladas em cobertores sobre colchões que se espalhavam por todo seu espaço. No domingo de manhã, participei na posição de ouvinte de uma reunião das comissões, estas se dividiam em limpeza, comunicação, negociação, imprensa, cultura, segurança e alimentação. Foi na reunião de segurança que, para mim, se destacou um homem, conhecido por Rubão, de estilo hippie, barba e basta cabeleira grisalha que relatou sua experiência, sobre tática móvel e fixa do exército, quando serviu em 1968, pois se discutia a vigilância na portaria e na laje. Falava numa boa oratória, alto e claro. “Vejam vocês, eu servi em 68!”. Depois a reunião se abriu para se discutir os procedimentos e, conseqüentemente, a chamada dos estudantes em todas as unidades para participarem da Ocupação. Como não se apresentou ninguém para CRUSP, eu, para me sentir útil, me ofereci para a tarefa.
À essa altura, as paredes da REItoria já estavam cobertas de cartazes, charges e notícias da internet ou da imprensa. O clima do ambiente também era muito bom. Pessoas podiam passar livremente pelas dependências da REItoria de bicicleta. Lembro-me de um rapaz com um enorme cabelo “black power” andando tranqüilamente por salas onde outrora se realizavam reuniões solenes.
Imbuído na minha tarefa, encontrei um amigo, o Azul, que me alertou para urgência estratégica de chamar os moradores do CRUSP para a Ocupação na segunda-feira de manhã, pois, com o início de expediente, poderia ser solicitado, por parte das autoridades, reforço policial para acompanhar a entrada dos funcionários na REItoria. Fomos para a sala de comunicação, onde todos os computadores estavam em plena atividade4. Reunidos em três, elaboramos um panfleto. Isto levou muito tempo, pois no salão se fazia uma plenária e, de repente, ocorreu uma grande algazarra: algum integrante do DCE se reunira com o vice-reitor para negociar à revelia do movimento. Assim a todo instante, alguém ia olhar os computadores para ter informações, o que interrompeu várias vezes o nosso trabalho. Quando terminamos, fomos para uma sala onde fizemos centenas e centenas de cópias dos panfletos nas máquinas de xerox, que estavam ligadas e funcionando a todo vapor. Depois, em grupos, e com uma integrante da AMORCRUSP que surgiu naquela hora, saímos para distribuí-los nos vários blocos do conjunto residencial da USP.
Mais tarde, voltei para participar de uma reunião dos moradores do CRUSP. Nesta reunião, discutia-se a inserção das reivindicações dos moradores do CRUSP nas reivindicações gerais da Ocupação. Foi aí que tomei conhecimento dos 14 pontos de pauta das reivindicações dos estudantes, em especial a relacionada à moradia.
Na segunda feira de manhã, fui testemunha do transtorno que foi para os funcionários entrarem na Ocupação e pegar seus pertences. Foram horas aborrecidas…
Pelo menos, desde sábado, não havia ninguém da segurança na Ocupação, que, na verdade, na segunda-feira, endossava a deliberação da plenária da não permanência de nenhum elemento da segurança dentro dela. Assim, os funcionários deviam, um a um, ser acompanhados pelos próprios estudantes.
O carro de som do Sintusp estava lá também. Do alto falante, uma voz de um funcionário denunciava alto e bom som que atual gestão do DCE no domingo manchava o nome de Alexandre Vannuchi Leme. Alguns dias depois, o DCE foi expulso da Ocupação em votação quase unânime.
E foram assim meus dias, alternando entre estar na Ocupação e no CRUSP, sem, no entanto, me engajar no movimento. Gostava, particularmente, de passar as madrugadas em “missões especiais”, como nas ocasiões em que, acompanhado de um grupo de amigos e sempre de alguém da comissão de segurança, que se tornava também um amigo, era necessário fazer algumas expedições pelo Bloco L. Assim, por exemplo, subi no telhado da REItoria para desconectar a antena da rádio Várzea; ou em todos os andares do bloco para desligar os computadores, pois existia a possibilidade dos funcionários estarem trabalhando remotamente, no CCE ou mesmo em casa, através dos computadores que permaneciam ligados; ou ainda para procurar e recolher tuners de xerox e assim reabastecer as máquinas lá de baixo… mas o melhor foi acabar com todo o café e capuccino de uma máquina de Nescafé, que se encontrava no último andar. Enfim, foi nestas expedições noturnas que notei a semelhança da estrutura da REItoria com os dos blocos do CRUSP, isto é, as escadas e elevadores na extremidade do prédio, e o corredor disposto de um lado e aposentos de outro. Por isso, não faltou, nas reuniões do CRUSP e mesmo em assembléia, quem reivindicasse a reintegração de posse da REItoria para os moradores do CRUSP…
Foi numa dessas ocasiões que um amigo chegou para mim e disse: “Você está perdendo reuniões importantes dos independentes!”
8 de maio, à noite, assembléia geral dos estudantes na frente da reitoria ocupada. Chuva fina, depois chuva forte. A assembléia muda-se para o prédio da História-Geografia. Mais de dois mil estudantes: “USP, Unesp, Fatec e Unicamp; na luta professor, funcionário e estudante!!!!”
Esforço-me agora, algum tempo depois, para lembrar da ordem dos fatos, em vão. Como já mencionei, vou descrever o que vier à tona na superfície de minhas memórias. Recordo-me agora que numa segunda-feira houve um encontro dos estudantes das universidades estaduais. A Ocupação estava apinhada de gente, e acho que já estavam lá as barricadas de pneus, ainda magras é verdade. Neste dia, quando assistia a uma aula, um aluno informou que a reitora Suely entrara com uma pedido na Justiça de reintegração de posse, e a REItoria seria desocupada na sexta-feira. Quando fui para lá, depois da aula, realizava-se a assembléia das estaduais dentro da Ocupação. Entretanto, todo mundo se espremia e se amontoava. Então, obviamente, a assembléia passou para o lado de fora. A questão central era saber se este fórum, dos estudantes das estaduais, podia deliberar pela e continuidade da Ocupação, e assim deslegitimar a assembléia dos estudantes da USP do dia oito, que ia numa outra perspectiva: os assuntos da ocupação diziam respeito única e exclusivamente aos alunos da USP. Houve muita polêmica, e finalmente se chegou em assembléia a um meio termo, o indicativo da manutenção da Ocupação. Nota-se que nesta altura a menina da AJR já podia filmar as assembléias e os acontecimentos na Ocupação.
Encerrada a assembléia das estaduais, iniciou-se outra, dentro da ocupação, só de alunos da USP. Nesta assembléia, todas as dúvidas sobre a intenção dos partidos para desocupar foram para mim dissipadas, pois circulava um boato neste sentido, depois de uma reunião de negociação com a reitora. Várias figuras carimbadas de partidos se revezavam em suas falas para defenderem a desocupação. Os argumentos eram os mais variados: que a contra-proposta da reitora era uma vitória do movimento; que a Ocupação já tinha se esgotado como instrumento de reivindicação; que a convivência e o ambiente dentro da Ocupação estavam se tornando insuportáveis; que a reitora não iria mais negociar; que a Ocupação estava se tornando uma “rave”, etc. Do outro lado, os que defendiam a Ocupação contra-argumentavam: que a contra-proposta da reitora eram migalhas, um rebaixamento da pauta de reivindicações; que a Ocupação era o único instrumento político capaz de unificar trabalhadores e estudantes durante a greve; que a reitora não se posicionara perante os decretos, etc.
Votou-se nesta plenária a propósito da manutenção da Ocupação, que saiu vitoriosa. Então em coro e com punhos cerrados para o alto, os manifestantes se fizeram ouvir por todo lugar: “Ocupa! Ocupa! Ocupa! Ocupa!…” Entretanto, o partido pró-desocupação alegou que “não houve contraste” na votação. Não faltaram protestos contra, mas a votação foi refeita. Desta vez, foi necessário contar um a um. Desta vez não houve dúvidas, vitória em larga medida da Ocupação. Novamente, se ouviu, desta vez com mais intensidade, entoarem os gritos contagiantes que marcaram a Ocupação: “Ocupa! Ocupa! Ocupa! Ocupa!…”
Nota-se que os grupos e facções políticas pró-desocupação fizeram de tudo para atrapalhar o andamento da plenária; aproximavam demasiadamente da mesa; tumultuavam; votavam em bloco; tentavam conduzir a assembléia por meio de propostas obscuras, etc. Aqueles que defendiam a Ocupação acusavam: “Isto é manobra!” Alguns encaravam com bom-humor: “Olha, tem um avião lá fora que precisa ser manobrado!” Esgotados todos os recursos para impor sua posição, tentaram uma nova estratégia: agendar uma nova assembléia para o dia seguinte, para discutir a desocupação. Eu, sem me manifestar, achei um absurdo, pois a plenária já se estendia pela madrugada, e se tornava extrema cansativa e desgastante. Marcar outra assembléia para amanhã era depreciar todo processo em prol de interesses de uma minoria, que se arrogava na posição de uma melhor compreensão dos rumos do movimento. No calor das emoções gritavam-se de todos os lados, e alguns diziam: “Desocupa PSTU!” E assim, as defesas que se seguiram foram exaltadas de ambos os lados, mas, dentre elas, uma foi emblemática. Lembram-se do Rubão, aquele hippie de barbas e cabelos compridos, então, foi dele a fala que sintetizou toda aquela questão. Tomou o microfone e disse serenamente, “gente, amanhã já é hoje!” Essa frase provocou risos de todos, por talvez ser tão simples e verdadeira. Como ninguém tinha reparado, já passava de meia-noite há um tempão! Sim, amanhã já é hoje!
Um fato que não se pode deixar de mencionar é que se fez plenárias e reuniões para tudo, desde colar e fixar faixas, cartazes e charges na parede como também a propósito de uma possível rotatividade dentro das comissões, esta porém não vingou.
Logo nos primeiros dias, foi posto uma grande tabela numa parede com os horários de atividades e turnos das comissões, de maneira que voluntários dispusessem seus nomes nela de acordo com sua disponibilidade — com o tempo ela não funcionou.
A comissão de limpeza, entretanto, era, como se dizia, a “mais espontânea, flexível e anárquica”, quem estivesse disposto, a qualquer hora, era só pegar a vassoura e o rodo e mãos à obra. O núcleo duro eram as comissões de negociação, imprensa e comunicação que, como também se dizia, “o pessoal não largava o osso”. A comissão de alimentação fazia no geral uma comida razoável, e os provimentos e recursos eram obtidos através de doações de C.A.s e outras instituições. Na comissão de segurança, muita gente, não todos evidentemente, encarnaram e personificaram o papel do segurança; com o rosto sisudo, mal-encarado, olhavam desconfiados para sua carteirinha e para você, depois faziam um sim com a cabeça, com ostensiva má vontade, e olhavam fixamente para seus olhos, enquanto você entrava.
Um fato, logo nas primeiras semanas, chamou a atenção e repercutiu por toda a Ocupação: um indivíduo fora acusado de assediar algumas meninas. Um grupo só de garotas, então, se reuniu numa plenária improvisada e deliberou a expulsão do “acusado”. No dia seguinte as opiniões se dividiam, uns eram a favor da decisão, outros contra. Aqueles diziam que certas condutas eram inaceitáveis; estes que houve exagero. Alguém disse, “isto é manobra para dizer que a convivência na Ocupação chegou a um limite intolerável”. Até o ultimo dia da Ocupação, havia ainda quem usasse o argumento da deterioração da convivência para justificar a desocupação.
Não posso deixar de comentar também que a Ocupação atraiu muitas pessoas não ligadas diretamente ao movimento estudantil, como ex-alunos, alguns da década de 80, como o famoso Evandro, que exigiu a devolução imediata dos blocos K e L para o CRUSP, “não sei porque chamam estes prédios de reitoria”, mas que também fez duras críticas aos estudantes porque suas propostas não passavam nas assembléias; moradores da periferia, o “pessoal da Brasilândia” (talvez uns quatro cinco ou mais) também se fez presentes; dois ou três moradores de rua passaram por lá, como o Bacalhau e o Profeta; um peregrino, conhecido por Rei, que se dizia estudante de jornalismo, oriundo da Bahia, e que viajava por todo o país e na Ocupação dormia, na ante-sala da sala da reitora, enrolado a uma bandeira do Brasil, que, segundo ele, foi tirada do mastro da REItoria; um grupo anarquista conhecido por Exército de Palhaços também deu as suas caras por lá; e algumas crianças, dentre elas as minhas sobrinhas, que aparecia esporadicamente e corriam para todos os lados ou deslizavam em cadeiras de rodinhas pelo saguão da REItoria Ocupara.
Caminhando ao redor REItoria, podia-se ver câmeras de vídeos vendadas e nos mastros uma única bandeira, amarela, tremulando ao vento forte: “OCUPAÇÃO DA REITORIA”
Nas reuniões do CRUSP, decidimos manter a Ocupação. Eu, por exemplo, argumentei que vivi a experiência de muitas greves na USP e, durante este período, o campus permanecia esvaziado, ou melhor, desértico. No meu entender, a Ocupação era o único meio de mobilização e participação dos estudantes. Deste modo, durante uma greve, a maioria dos estudantes fica excluído do processo, que acaba restringido a uma “esfera longínqua e abstrata”, própria da política. Conclui minha fala dizendo que “com ‘rave’ ou sem ‘rave’ a Ocupação devia se manter”. Outros disseram que a Ocupação devia ser o QG da greve, o espaço perdido de sociabilização que outrora fora DCE. Comecei, a partir daí, a participar também das reuniões dos independentes, nesta defendi que a reivindicação por moradia não era conservadora mas vinha de encontro com o turbilhão de reivindicações que, em última instância, culminavam com a revogação dos decretos do governo. Estas reuniões tinham, por vezes, como principal tema o intuito de se evitar as tais manobras. Apesar disto, elementos variados de partidos participavam delas.
As reuniões dos independentes não foram muito além de umas quatro ou cinco reuniões, no entanto, serviram para expressar um grande descontentamento com o desenrolar dos fatos internos à Ocupação. A influência dos partidos políticos pouco a pouco foi sendo minada, e estes passaram à condição de coadjuvantes no processo. No salão principal, uma faixa se estendia de alto a baixo com os seguintes escritos: “fora partidos!” E o símbolo mais comum que se viu – um círculo com um flecha em forma de raio voltada para cima – foi o dos “squats” ingleses, movimento francamente anarquista, visto em todos os lugares5. Ainda assim, quase todos os independentes viam um lugar importante dos partidos nos assuntos relativos a Ocupação.
Apesar do que se dizia, na minha opinião, os dias na Ocupação eram muito agradáveis. O outono foi bem seco, quase todos os dias foram ensolarados e azuis. É claro que também algumas noites foram geladas, e alguns dias cinzentos, mas no geral o tempo foi generoso. Sempre se podia também encontrar pessoas conhecidas e conversar sobre absolutamente tudo.
As reuniões, discussões e debates eram freqüentes, como os debates sobre aborto, reforma da previdência e questão do Incrusp, o movimento negro e as cotas nas universidades. Foram realizadas “aulas magnas” no Conselho Universitário. Shows de música foram freqüentes, dentre eles Bnegão e Tom Zé: “esse espaço é autogestionado por vocês!”. Uma roda de samba, o Samba da Vela, se apresentou também dentro da REItoria e saraus, performances e intervenções teatrais foram constantes, além de muitas outras atividades culturais. Um amigo dizia, “aproveita agora, porque a gente só vai entrar de novo na reitoria como burocratas”.
Também sempre se exibia algum filme, dentro da programação elaborada pela comissão de cultura ou quando alguém disponibilizava espontaneamente uma fita de vídeo ou DVD. A maioria abordava a temática política. O que mais me marcou foi o Apocalipse Now de Francis Forf Copolla, exibido numa madrugada sob a ameaça de invasão da tropa de choque.
Um dia foi particularmente especial, o do Dia das Mães. Num domingo ensolarado e tranqüilo, foram convidados familiares dos ocupantes e servido uma excelente feijoada. O clima de confraternidade contagiou todos os ocupantes.
Certo dia, frio e nublado, diga-se de passagem, fui à Ocupação, onde se fazia intensa movimentação por causa de uma assembléia geral dos estudantes. Logo que cheguei, fui comunicado que uma viatura da polícia acabava de notificar a reintegração de posse através de um mandado entregue na portaria.
Na assembléia, mais à noite, votou-se pela continuidade da greve (aliás, aprovada por unanimidade) e da Ocupação. A reintegração de posse surtiu um efeito contrário ao esperado, intensificou a solidariedade e a participação dos estudantes. Naquela noite peguei muitos cobertores e fui para Ocupação: difícil dormir com tanta gente!
A partir daí, a ameaça da tropa de choque passou a ser constante. Noutro dia, sob um boato que a tropa de choque ia tomar a Ocupação às 16 horas, um helicóptero da polícia militar sobrevoou a Ocupação durante, pelo menos, uma hora. Neste dia, fui com a minha mãe e sobrinhas para a Ocupação. É claro, sob os protestos de minha mãe! Saímos logo, mas voltei mais tarde para uma assembléia.
Nesse clima, o próprio comando da tropa de choque ligava todos os dias para ameaçar a Ocupação: “hoje nós iremos aí”. E, certo dia, o coronel fez as seguintes declarações a um noticiário de televisão: “esgotando todas as vias pacíficas, usaremos de violência”.
Da minha parte, nunca me envolvi com comissão alguma. Ajudava de acordo com as necessidades que apareciam. Certa vez, eu ajudei a fazer uma sopa. Cortamos alho, cebola, batata e cenoura e jogamos tudo num caldeirão para cozinhar. Depois olhei para as batatas e as cenouras no fundo do caldeirão cheio d’água e disse, “acho que faltou lavar os legumes”. Numa outra ocasião, precisavam preencher os quadros da segurança, era um fim de semana, a Ocupação estava vazia, e eu me dispus a cumprir a tarefa no domingo da meia-noite à uma e meia da manhã.
Fiquei então na “catraca” impedindo o acesso ao bloco K. Imaginei que esta uma hora e meia passaria demoradamente e bem tediosa. Engano meu. Não se passara nem dez minutos e alguém, que se identificou da comissão de segurança, alegou que algumas luzes nos andares de cima estavam acesas e era preciso verificar. Algum tempo depois, ele voltou dizendo que uma reunião da comissão de segurança se realizava lá, e ele ia participar. Peguei uma revista, que achei no balcão, e passei a folheá-la. De repente, uma gritaria e algumas pessoas entraram correndo pelo saguão: “O cara entrou bêbado na ocupação!”. Em seguida, trouxeram um rapaz que eu reconheci do CRUSP, e colocaram-no numa cadeira onde eu estava de guarda. A Neli, do Sintusp, tentava calmá-lo. Ele, completamente alterado, falava coisas sem sentido e olhava com olhar vago para o nada e apontava como se pensasse, “peguei você!” Havia brigado com a namorada. De repente, se levantou e caiu derrubando tudo a sua volta, inclusive uma lixeira cheia de pitucas de cigarro. Depois de esclarecer onde ele morava, e levarem-no, quando tudo ia voltar à tranqüilidade, uma garota foi passando pela catraca. Eu a interceptei: “pára aí, onde você vai?” “Sou da comissão de segurança, vou participar da reunião”. Tudo bem; peguei a revista e retornei a leitura. Alguns instantes depois, alguém apareceu de dentro do prédio e disse: “Não deixe mais ninguém entrar”. Eu retruquei dizendo, “mas ela disse que era da comissão de segurança…” “Não importa, agora não deixe mais ninguém entrar”. Tudo bem, agora sim, eu poderia ler a revista em paz. Outra vez, redondo engano, pois, de outra vez, três pessoas de uma vez foram passando por mim sem dizer nada e com muita pressa. “Esperem aí, acabaram de me dizer que não é para deixar mais ninguém entrar!” Uma moça loira, que ia na frente, retrucou de maneira ríspida; “não me interessa, sou da comissão de segurança”, e entrou. O segundo foi no vácuo. E o terceiro parou, e passou a argumentar. Eu disse, “vai, pode subir”. Afinal, onde passa boi passa boiada! Logo em seguida a mesma pessoa de instantes atrás desceu e me interpelou. Eu expliquei o acontecido e disse que não estava lá à toa, e por isso entendia como uma falta de respeito de algumas pessoas que se achavam no direito, imbuídas não sei em quê autoridade, de passar por cima de alguns consensos formados por dias de convivência na Ocupação. Se não havia respeito, não havia a menor necessidade de eu estar lá. O rapaz se mostrou bem compreensivo e subiu6. Quando acabou o meu turno, que. diga-se, de passagem, passou bem rápido, lembrei, depois, com um certo desapontamento: “não deu para acabar de ler o artigo da revista!”
Não sei se devia neste momento considerar alguns pontos fora da ordem do tempo e que ao mesmo tempo misturam o começo, o meio e o fim sem trazer prejuízo para a forma da narrativa. Mas já que iniciei, assim como tudo na vida, é muito difícil voltar atrás. Começo pelo fim então. Na assembléia que marcou o último dia da Ocupação, a dos funcionários, o circo estava armado. O Brandão do Sintusp fazia passar a impressão de querer avaliar seriamente, naquele fórum, o documento emitido pela reitora na véspera, na assembléia dos estudantes, e assim em conjunto com os funcionários tomar a melhor resolução. Ora, todos sabiam que aquela assembléia ratificaria a deliberação de desocupação da assembléia dos estudantes da noite anterior, que, inclusive, já faziam a limpeza da REItoria. Entretanto, uma condicional na proposta de desocupação retificava que esta só se realizaria se dos funcionários confirmassem tal resolução. Mas próprio grupo político do qual pertence o Brandão, a LER-QI, reunido algumas horas antes da assembléia dos estudantes, defendeu neste plenário com unhas e dentes e com os mesmos termos em que defendia a Ocupação, só que com um sentido contrário agora, a desocupação – depois voltaremos a esse assunto. Assim, quando cheguei à assembléia dos funcionários, deu tempo de ouvir o Brandão, que estava na mesa, pedir licença a um estudante e dizer: “por favor, deixa eu falar, só a gente sabe como é difícil falar nas assembléias de vocês”. Palavras que foram seguidas por aplausos. Mas, se houve alguém que não pode ter reclamado de ter falado nos fóruns da Ocupação dos estudantes, esse alguém foi o Brandão, fato mesmo que parecia impossível para muitos estudantes: falou quando quis, em quase todas as assembléias, nas plenárias, nos debates, nas discussões, nas reuniões, nas aulas magnas… Aliás, os funcionários sempre tiveram trânsito livre na Ocupação e nos seus fóruns. Aproveito então o ensejo e já faço uma emenda, o meio. Nas reuniões dos independentes, chegou-se a proposta de estes interferirem de maneira mais contundente nas assembléias, inscrevendo-se em peso nas falas de avaliação, assim como fazem os partidos. Uma assembléia é estruturada basicamente desta forma: os informes, as falas de avaliação e a deliberação. Assim sendo, muitos independentes se inscreveram, todavia, ainda assim, apesar de serem a maioria, o número de inscritos foi insignificante se comparado aos dos militantes dos partidos, mais organizados. Dos sessenta, decidiu-se cortar pela metade e somente números pares os números pares falaria. E não é que só os elementos dos partidos discursaram e, ainda assim, sempre os mesmos. Mágica? O mais irônico de tudo, porém, é que eles sempre eram rechaçados pelo plenário.
Mas foi mais ou menos nessa ocasião que o PSTU reconheceu a desocupação como um erro político e os independentes perderam a força. Estes só a recuperaram novamente quando os partidos, inclusive o PSTU, voltaram a insistir na desocupação. Já que falamos neles, os partidos que, durante quase todo o processo, defendiam a desocupação eram o Psol, o PSTU e o DCE (PT e PC do B) e os que defendiam a Ocupação eram a LER-QI e o PCO-AJR, estes últimos defenderam-na até o fim7.
Mas voltemos agora para o começo. Nas primeiras semanas da Ocupação, servia-se tanto café que era praticamente improvável encontrar uma garrafa térmica vazia. Café não faltava na Ocupação. Durante todo o tempo, o pessoal trabalhava dia e noite nos computadores, elaborando o Blog da Ocupação, recebendo moções de apoio do mundo todo, escrevendo panfletos, faixas etc. A atividade era tão intensa que o funcionário Magno do Sintusp (ex-militante junto com Neli do Comitê Zapatista e independente como ela), com um cafezinho na mão se manifestou entusiasmado: “ora, dizem que o pessoal aqui é um bando de desocupado, mas eu nunca vi esta reitoria trabalhar tanto como agora, porque ela trabalha 24 horas por dia!”
Numa assembléia realizada internamente na Ocupação, novamente aprovou-se a manutenção da ocupação e logo se seguiram os gritos em coro que se tornariam a marca registrada da Ocupação. Faço um “à parte” agora: foram produzidas duas telas para estampar camisetas, em uma delas um desenho de um castelo com os seguintes escritos: “Eu ocupei a REItoria”; na outra, a torre do relógio ocupada com os seguintes escritos: “Ocupa! Ocupa! Ocupa! Ocupa! Porque amanhã já é hoje!”
Nesta assembléia um problema veio à tona, algumas pessoas que passavam integralmente seus dias na Ocupação passaram a questionar se os estudantes que vinham para assembléias e depois voltavam para suas casas podiam votar pela continuidade da Ocupação. Isto nunca se tornou realmente uma reivindicação interna ao movimento a ponto de virar proposta. Mas salientou uma reivindicação. Assim os ocupantes passavam a chamar aqueles que discursavam em prol da Ocupação e não estavam lá todos os dias: “vem pra Ocupação você também!” É preciso dizer isto porque, como já foi dito, vivíamos sob a ameaça de uma possível reintegração de posse através das forças repressivas do governo. Nesta plenária, aquele indivíduo que, quando eu fazia a guarda na catraca, me pediu para que não deixasse ninguém subir por duas vezes, tomou a palavra e disse se referindo à reunião “secreta” da comissão de segurança daquela agitada madrugada: “nós, da comissão de segurança, concluímos em reunião que a Ocupação não tem condições de resistir à tropa de choque”. De fato o clima era tenso, e afinal com que direito pessoas que mal passavam algumas horas na Ocupação podiam de decidir por aqueles que estavam em tempo integral, mesmo tendo as reivindicações um caráter universal. Na minha opinião, as assembléias apenas ecoavam a decisão daqueles que decidiram ocupar. Inclusive, os ocupantes, estes que foram morar na Ocupação, não arredaram o pé e defenderam permanecer até o último dia, com raras exceções. Todavia era uma questão ética importante. A REItoria numa situação de invasão pelo uso da força se tornaria uma ratoeira, e em caso de desespero forçado poderia virar uma tragédia. Mas ainda assim, houve pessoas que, mal passaram um único minuto na Ocupação e que disseram que se ocorressem perdas seria muito bom para o movimento, e portanto eram favoráveis a permanência dos estudantes na REItoria. Mas não vou mais me adentrar nessa questão.
Numa outra plenária, numa noite de sábado, dentro da Ocupação, discutiam-se muitas coisas como, por exemplo, a resposta que o movimento daria a elementos do governo e ao comando da tropa de choque numa reunião marcada para uma segunda-feira de manhã; que tipo de delegação seria formada, se apenas pelos advogados do Sintusp ou se por uma junta de advogados; se seria conveniente a intervenção, como mediador, do senador Eduardo Suplicy nas negociações, etc. Muito se debateu e chegou-se ao seguinte resultado, uma junta de advogados, inclusive os do Sintusp, levaria uma carta redigida pelo movimento e entregaria à comissão citada acima sem dizer uma única palavra. Quanto ao senador, apesar da AJR argumentar que este costumeiramente mediava sempre a favor dos interesses dos poderosos, foi aprovada sua mediação. De repente, houve um tumulto, depois cessou. Dali a pouco, um membro da comissão pediu a palavra e disse que daria um informe: “Pessoal, nós pegamos um cara e estamos achando que ele é P28; neste tempo todo, ele entrou a cada dia dizendo que era de um curso diferente, anteontem ele disse que era da FAU, ontem da Letras e hoje da História, só que nós pedimos para que ele mostrasse a carteirinha e ele não tem…” Houve uma grande agitação e muitos protestaram, principalmente um grupo reunido composto, em sua maioria, por negros da Educafro, que se denominava por “Ocupação Afirmativa”. Estes diziam: “Solta ele, isso é um absurdo; vocês não querem polícia no campus mas agem como eles!” Novamente uma confusão, e o rapaz da comissão de segurança disse: “Gente, vocês não estão entendendo, o cara tinha um disquete e quando pedimos para ver o que tinha no disquete ele o quebrou; depois disse que ia ligar para a mãe mas em seguida esqueceu o número do telefone dela…” Algumas pessoas perguntaram onde ele se encontrava no momento. “Então, ele está preso dentro de uma sala, nós estamos querendo apertar ele para ele falar…” O pessoal da “Ocupação Afirmativa” gritou: “Absurdo, solta ele!” E o rapaz continuava, “tem um pessoal bem nervoso lá, nós estamos contendo-os para que não o agridam…” Não faltou que gritasse que aquilo era tortura. Decidiu-se, não sem levar muito, mas muito tempo mesmo, votar aquela situação em plenária, algo que suscitou muitos protestos da “Ocupação Afirmativa”, que exigia a soltura do rapaz imediatamente e sem qualquer condicional. Votou-se, por unanimidade, a liberdade do suposto P2; em seguida, levaram a proposta se era o caso de revistarem sua mochila. Votou-se novamente e de forma unânime que não se revistasse a mochila. Detalhe, ele não tinha mochila. Cogitaram a proposta de acompanharem-no até sua casa. Outra vez foi unânime a votação. Alguns integrantes da comissão de segurança saíram inconformados. Ao passar por mim, vi o rapaz, um garoto pequeno e magro e muito pobre. Pensei, “é esse o P2?” Na saída, algumas pessoas o seguiram e disseram que um carro o apanhou. Um amigo depois me falou que a Neli do Sintusp mencionou que a polícia coloca geralmente elementos para se infiltrarem em movimentos sociais que nada se parecem com o perfil do policial.
Depois dessa plenária tensa, uma garota da “Ocupação Afirmativa” desferiu um soco no olho de um dos rapazes da Brasilândia, o único que não se envolveu politicamente e que estava lá movido por interesses particulares que consistiam em vender drogas, e ainda lhe cuspiu na cara. Fui atrás dela para saber o que acontecera para ela tomar uma atitude tão drástica. Ela, a princípio relutou em dizer, mas depois passou a me explicar o seguinte fato que, trocando em miúdos, era mais ou menos isso: o rapaz chamou sua atenção referindo-se a ela por morena, então ela pediu para que ele não a chamasse de morena mas sim de negona, até mesmo por causa de uma certa música; aquele então retrucou, “então você quer que eu te chame de macaca!” Eis o motivo da contragolpe, na forma de um soco no olho. Ela concluiu dizendo, “vai explicar para ele que ele também é negro!”
Aliás, a Ocupação Afirmativa foi ao mesmo tempo uma dissidência contundente e um agente que se fez tão presente que conseguiu incluir mais três pautas às quatorze existentes. No final de tudo, eles conseguiram uma audiência pública com a reitora.
O mártir Davi. O Davi, ao participar do momento de ocupação – talvez invasão – acabou machucando a mão e foi parar no Hospital Universitário. Assim foi ele identificado, e movida uma ação na justiça contra ele responsabilizando-o por toda a Ocupação. Certa vez, ele passou um abaixo-assinado que, trocando em miúdos, seu teor dizia que a Ocupação era um movimento político e coletivo e não obra de uma única pessoa. Quando eu assinei, eu estava na cozinha. Um casal de amigos meus também assinou. Mas duas pessoas se recusaram, dizendo: “você vai entregar todo mundo da Ocupação.” O Davi rebateu, “não é verdade, esse documento não tem validade jurídica…” Eu e casal nos retiramos, e eles disseram: “briga de partidos”. Todavia, se eu não me engano, o Devi era um independente. Segundo algumas pessoas, o Davi, na ocasião, já havia gasto mais de sete mil com advogados.
Numa das assembléias passaram o abaixo-assinado. Alguém pegou o microfone e explicou a situação e concluiu: “gente, já tem mais de mil assinaturas”.
No domingo, de manhã, uma plenária decidia os moldes do encontro com as autoridades citadas acima, foi lida então a carta que ia ser entregue na reunião e distribuída para a imprensa. Juntei-me a comissão que ia reescrever a carta. Minha contribuição foi mínima, com a inclusão de umas três ou quatro palavras e da reconstrução de uma frase que estava um pouco confusa. Numa das passagens da carta, era preciso esperar uma decisão da plenária. “Então, gente, o que o pessoal decidiu?” alguém respondeu: “Resistir!”. Logo foi incorporado ao texto numa das partes que tratava da iminência da ação da tropa de choque: “Nós resistiremos”. Depois, alguém mencionou a palavra “transparência”, entretanto, a Mafê, da comissão de cultura, alertou para esta palavra, que era, no seu entender, um termo por excelência PSDBista e PFLista. De repente, o celular da Mafê tocou. Ela tapou o celular e disse: “Gente, o senador Suplicy! Oi senador…”
Ao final de uma outra plenária, realizada no meio da semana, foi lida uma moção de repúdio a um dos membros da mesa por algumas de suas colocações consideradas impropérios machistas. Ele pediu defesa e disse que se as pessoas não sabiam interpretar um texto, se referia as suas colocações, isso não era problema dele. Porém, ninguém retirou a moção, que foi aceita por unanimidade. Depois ele saiu tentando convencer, um a um, a todos os presentes de que não era machista. Consegui ouvir ele falar, numa discussão com uma moça, o seguinte: “Desculpa, mas a sua posição é burra…”
Numa madrugada, na ante-sala à sala da reitora, que possuía uma televisão, assistimos a um debate com o senhor Aristodemo Pinotti e mais alguns convidados conservadores, como o reitor da Unibero, sendo o assunto principal a Ocupação. Estes designaram o movimento de várias formas, dentre elas, “anárquico e inconseqüente”, ou “rebeldes sem causa” que tinham por reivindicações “alguns dormitórios”. Quando se mencionou sobre a ação da tropa de choque, concluíram que o melhor era vencer por cansaço. Fiquei imaginando qual seria a opinião do secretário se soubesse que nós, de dentro da Ocupação, assistíamos ao programa e achávamos muito engraçado aquilo tudo.
As reuniões de autogestão substituíram as dos independentes como reação aos partidos. Começaram com as meninas da Incubadora e depois se generalizaram. Muito se discutiu, a começar pelas comissões. Eu, que participei de muitas delas, disse que do ponto de vista anarquista, as comissões eram desnecessárias porque pressupunha um nível de condições materiais e mentalidade em que os interesses particulares coincidiam com o coletivo, por exemplo, com relação à segurança todos se responsabilizariam por ela, etc. Cheguei à conclusão que a autogestão só poderia ser colocada em toda a sua potência estando inserida num projeto político que visava o fim da economia capitalista e da sociedade de classes, e que seria balela se pensar a auto-gestão fora deste contexto. Um estudante de mestrado de História, e um dos primeiros a propor as reuniões dos independentes, disse que era preciso questionar o pressupostos da Ocupação, inclusive refletir sobre a destruição ou não do patrimônio, para que não tomássemos atitudes meramente pragmáticas. Colocou também em questão o formato das assembléias e plenárias, que do jeito que eram feitas não eram espaços de reflexão, mas de disputas partidárias, que faziam de “massa de manobra”, como tinha sido certa vez mencionado, o plenário engolir suas propostas. Sugeriu que as propostas fossem divulgadas em murais e mesmo na internet previamente às assembléias para que pudessem ser discutidas e refletidas. A urgência de alguns assuntos foi denominada por ele como manobra: “não precisamos nos curvar as pautas e determinações vindas de cima”.
Outra coisa importante que foi colocada tratava-se da dinâmica das reuniões que pressupunha uma ordem de inscrição das falas que entravava a fluidez do diálogo. Também foi mencionado o absurdo que podiam chegar estas reuniões, como no caso da votação de se revistariam a mochila do suposto P2 sendo que ele não tinha mochila. Quando se discutiu se as assembléias eram um fórum democrático, uma estudante das Ciências Sociais argumentou que a democracia era um termo usado para fins de dominação. Outro questionou qual era a vantagem de se tirar um reitor se outro entraria no seu lugar… Enfim essas reuniões iam pelas vias de uma radicalidade, mas notei também que nem todos concordavam – o que era perfeitamente aceitável. A questão do patrimônio, por exemplo, causou escândalo, e muita gente participava mais por ressentimento de não conseguir furar a barreira de algumas das comissões cristalizadas, as mais “nobres”, do que qualquer outra coisa.
As reuniões de auto-gestão talvez exprimiam um grande descontentamento. Como já foi dito, as assembléias eram estruturadas em três partes. A parte das falas de avaliação do movimento, na verdade, tornavam-se verdadeiros “showmícios”, onde elementos, a maioria de partidos, faziam discursos inflamados. Esta parte tomava um tempo absurdo, e as reuniões, além de serem extremamente cansativas e sem conteúdo de fato, se estendiam pela madrugada. Muita gente não podia ficar e comentava: “Gostaria eu de me mudar para a Ocupação, mas preciso trabalhar, acordar cedo, me sustento sozinho, não moro na casa de meus pais, e não sou sustentado para fazer revolução”. Esse tipo de indagação também revelava a diversidade e os conflitos do movimento. Alguns acusavam os membros dos partidos de fazerem da política uma profissão, e portanto podiam passar horas em discussões estéreis, esvaziar as assembléias e impor sua pauta política.
Ora, talvez pelos efeitos das reuniões de autogestão e desse descontentamento, a parte das falas de avaliação foi simplesmente suprimida nas duas últimas assembléias, por votação do plenário. As reações com relação às reuniões de autogestão foram as mais contraditórias. Houve quem dissesse que o exercício da democracia era extremante difícil e exaustivo e que as assembléia não eram lugar de reflexão e discussão mas de deliberação: “quando vamos entender que democracia é extremamente difícil…” Outros diziam, “o momento é complicado, é preciso que façamos uma reflexão, uma discussão e uma avaliação para decidirmos sobre os rumos do movimento, então devemos manter aberto o momento das falas na assembléias…”
Reservei este espaço, agora que está se encerrando esta narrativa, para descrever um dos momentos mais bonitos do movimento, assim como o Dia das Mães: o aniversário de um mês da Ocupação. O dia 3 de julho caiu num domingo, frio, é verdade. Mas o clima estava excelente para a Festa Junina que se realizaria a pouco. Foi servido um jantar de primeira, um tipo de carne assada enrolada entre bacon e presunto, macarronada com queijo, salada e carne de soja para os vegetarianos - desse modo sempre houve uma atenção especial para estes. Estimava-se a presença de umas cento e cinqüenta pessoas aproximadamente para a festa. Lá fora, a frente da REItoria estava toda enfeitada com bandeirinhas juninas e uma fogueira. No casamento, o padre imitando uma voz de presidente Lula casava a reitora Suely com o governador Serra (ou com o Pinotti). Muitos dos ocupantes estavam vestidos a caráter, e uma grande e animada quadrilha não parou a festa inteira. E é claro, não faltaram vinho quente e quentão, muitos doces, um bolo de aniversário, o “Parabéns para você!”, e os gritos de Ocupa!
A publicação dos “decretos declaratórios” e a saída da ADUSP da greve causaram um grande impacto no movimento. Este acabou aos poucos se enfraquecendo.
Na minha opinião as duas últimas assembléias foram as mais dinâmicas e produtivas. O Rei surgiu, olhou a mesa e disse: “até que enfim uma mesa digna”. Como também já foi dito, foi suprimida a parte das falas de avaliação e cada proposta passou a ter um espaço de cinco minutos para cada defesa das partes contrárias e cinco minutos de réplica9. Ou seja, um espaço de vinte minutos para discussão de uma proposta sem ordem de inscrição.
Na primeira assembléia, os alunos do Audio-Visual (ECA) gravaram um vídeomanifesto com a aprovação do plenário que extrapolava as reivindicações dos movimento. Tocava em assuntos como corrupção, violência policial na periferia, violência no campo, latifúndio, sem-terras etc. Sob o impacto da retirada da ADUSP da greve, os partidos se articularam e conseguiram aprovar o indicativo de desocupação, já que a reitora se mostrava disposta a reabrir as negociações, desde que se aprovasse o indicativo. Chegaram a propor indicativo automático, ou seja, se a reitora negociasse a desocupação seria instantânea. Porém, venceu a proposta que qualquer que fosse os resultados das negociações estes deviam ser referendados. É preciso não esquecer que muitas Unidade da USP marcaram assembléia geral de seus cursos no mesmo dia que a assembléia geral dos estudantes, em frente à REItoria, como a Faculdade de Educação. Sabotagem?
Notei que já havia algum tempo que alguns figurões de partidos não faziam mais seus discursos emocionados, talvez para não queimarem sua imagem política ou porque não concordavam com as decisões dos partidos. Faço uma exceção para a Joana do Psol, pois, a partir do momento que o seu partido entendeu que era a hora de desocupar, em todas as reuniões, plenárias, assembléias, ela defendeu sua posição com a mesma integridade e serenidade, mesmo quando era saldada debaixo de muitas vaias, como freqüentemente acontecia.
No ultimo sábado, realizou-se o Encontro Nacional dos Estudantes que, segundo os mais críticos, nada mais era que um encontro marcado para promover a Conlute, a CUT do PSTU. Estes, que haviam sido repelidos das mesas das assembléias da Ocupação, voltaram a presidir o plenário. As assembléias feitas neste dia, que não tinham nenhum vínculo com do longo processo de discussão da Ocupação, voltaram a ter seu formato original, com seus “palanques” e longos “comícios”.
Neste dia, a minha banda ia tocar com o lendário Excomungados. Porém, por falta de equipamento o show foi cancelado e adiado para a próxima sexta-feira: um sintoma dos rumos que tornavam o movimento?
No dia seguinte, conversei com o Rei. Ele me contou que era estudante de jornalismo da Federal da Bahia, enfatizou também que o mais importante politicamente era atacar a reforma universitária, algo que estava passando à margem em todas as discussões. Achou irônico que o PSTU no Encontro Nacional o chamara de fascista, sendo ele mulato. Nota-se que foi ele que, no início da Ocupação, fora acusado de assédio sexual; segundo ele, um complô do PSTU para expulsá-lo da Ocupação. Não posso dizer até que ponto podia existir um ressentimento de ambas as partes, pois o próprio Rei já havia sido filiado ao PSTU, em outras épocas. Depois conversei com o Edinho, morador da Brasilândia, garoto pobre, que desde cedo foi obrigado a sobreviver na rua. Primeiro, elogiou o pessoal da AJR, “dos partidos, eles são os únicos que estão todos os dias aqui e nunca se negaram a ajudar na faxina”, e depois me mostrou um álbum e um “site” da Ocupação feito por ele. Por livre e espontânea vontade, o Edinho teve a iniciativa de organizar um arquivo da Ocupação, recolheu todo tipo de material, como fotos e folhetos, e colocou tudo numa pasta e na internet. Orgulhoso, dizia que a Ocupação foi o primeiro ato político de que já tinha participado, e agora sonha em cursar a Faculdade de História10.
Na última assembléia do movimento, numa quinta-feira, um grande impasse havia no ar. Com certeza, na minha opinião, esta reunião foi a mais dramática e emocionante de todas. Depois de faltar em duas reuniões marcadas, uma verdadeira afronta para os estudantes, já que se comprometera a negociar em caso de aprovação de indicativo de desocupação, a reitora liberou de última hora um documento, por meio de professores que intermediavam o conflito, que, grosso modo, ratificava a mesma contra-proposta que tantas vezes fora rechaçada como “migalhas” em plenária dos estudantes e, ainda por cima, impunha um ultimato para a desocupação até às 16h00 do dia seguinte. Para entender o teor desta contra-proposta, basta fazer uma observação com relação ao ponto da moradia: por exemplo, as vagas que seriam construídas como parte do acordo já faziam parte de um projeto da reitoria há muito tempo estudado. Com relação à pauta das garantias da não punição dos estudantes que participaram do movimento, deixo o Davi responder: “Gente, eu não quero influenciar a vontade da assembléia, não quero que meu caso determina a decisão desta assembléia, mas este documento não me contempla, por isso eu faço um apelo a vocês que pensem bem antes de votar, porque todos nós somos responsáveis por todos aqui, por isso pensem bem”.
Alguém tomou a palavra e disse: “estão querendo transformar o Davi num mártir!” O clima estava pegou fogo. Chegara então o momento de votar pela Ocupação ou não: cinco minutos para a defesa de cada parte e cinco de réplica. Algo de notável aconteceu, a LER-OI, que até então defendia a Ocupação, passou a defender a desocupação, como já foi assinalado, com os mesmos termos, “fluxo”, “refluxo”, “correlação de forças”, etc, só que com sentido contrário mas com a mesma convicção. Alguém do Psol concluiu sua fala da seguinte maneira: “eu quero terminar essa greve com vitória!”. Por outro lado, na defesa da Ocupação, estudantes de Araraquara, que dias antes foram detidos pela polícia numa ação de reintegração de posse, e de Campinas manifestaram a importância da Ocupação para todas as universidades do país. Outra fala foi também marcante, um dos rapazes da Brasilândia, com um capuz que quase cobria todo seu rosto, tomou a palavra e de maneira rústica e cheia de gírias mas com vigor, fez um apelo dramático: “aí mano, vocês tem que votar pela Ocupação, tá ligado, é o povo que tá aqui, o povo precisa da Ocupação, vocês precisam votar para continuar a Ocupação, tá ligado, tem um pessoal que chega aqui e vai embora, a gente não, a gente dá um trampo aqui”. De fato, a Ocupação extrapolava os limites da Universidade de São Paulo e mesmo daqueles que ocupavam integralmente a REItoria, querendo ou não, revelava demandas universais. Eu, da minha parte, não poderia mais me abster nesta votação, como tinha feito nas últimas assembléias, já que estava um pouco afastado da Ocupação por motivos familiares.
Realizou-se a votação, e a Ocupação perdeu. A mesa, formada por independentes, alegou que não havia tido contraste. O plenário protestou. Votou-se outra vez. A Ocupação perdeu novamente. Alguém de trás disse de modo sarcástico: “somente o pessoal da frente está votando pela continuidade da Ocupação”. Verdade, justamente eles, que estavam ocupando. Justamente eles.
Alguém da AJR, o Tataíra, da Universidade da Bahia, me convidou, em meio a um tumulto, quase uma briga, para uma reunião pró-ocupa depois da assembléia. Pouco mais tarde, um grupo de pessoas, auto-intitulado de modo irônico AJJ, passou ostensivamente pela reunião cantando as seguintes palavras: “Para que democracia se inventaram a guilhotina!”
Na sexta-feira, realizava-se uma assembléia dos funcionários na frente da REItoria, uma faixa, que militantes da AJR seguravam, estendia-se atrás da mesa: “Não foi a reitora, o governo, a tropa de choque que expulsou os estudantes da reitoria: mas a TRAIÇÃO do Psol, do PSTU e da LER-QI”. Na portaria, não deixavam o Macaco Louco entrar, perguntei o por quê: “ele tentou sair com o monitor de computador debaixo do braço”. Depois fui falar com ele: “eu estava saindo com o monitor e, de repente, quando olho, uma assembléia na minha frente”. O pessoal lá dentro fazia a faxina, tirava os cartazes, deixava tudo como estava antes da Ocupação, algo que foi motivo de crítica por parte de um dos professores, o Hanssen, que intermediaram a negociação: “deviam deixar tudo como estava, para mostrar que os estudantes ocuparam”.
Depois fui embora, pois tinha um compromisso. Quando voltei, ainda deu tempo de ver a retirada dos estudantes. Primeiro, alguns estudantes jogavam água com uma mangueira de incêndio em todo mundo que assistia e inclusive neles próprios; depois grupos contínuos de estudantes, cantando, saíam de dentro da REItoria; alguns levavam faixas com diversas mensagens, uma delas estava escrito, “Nós voltaremos!”. Os últimos a saírem foram o pessoal da AJR, com a faixa citada há pouco. Isto motivou uma briga de socos, que não demorou muito. Depois a imprensa em peso tentou entrar na REItoria mas foi impedida pelos estudantes. Estes gritavam: “Água! Água! Água! E, de repente, a mangueira voltou a funcionar e foi água para todos lados e para todo mundo, uma correria só. Correram todos, câmeras-mans, repórteres engravatados, que ficaram ensopados, estudantes e curiosos. Na portaria, o lendário Moisés Voador, que dava as suas caras por lá depois de muito tempo afastado da universidade, afugentava os jornalistas: “esta imprensa está serviço da burguesia, é uma fábrica de mentiras”. Os estudantes pulavam e cantavam: “quem não pula é da imprensa; quem não pula é da reitoria”, etc. Também não faltou o clássico: “O povo não é bobo, abaixo a rede globo!” Ao fundo, a música do carro de som do Sintusp animava a festa e os gritos de Ocupa!
Aos poucos, a guarda universitária foi tomando o seu posto.
O Rei, enrolada na bandeira do Brasil, dizia que esta era a segunda vez que ele perdia em São Paulo. Algumas pessoas queriam queimar a bandeira, este não permitiu: “Esta bandeira representa todos os estados do Brasil por onde passei”.
A greve então acabou.
Ao passar pela reitoria agora, e ao observar sua fachada sóbria, me vem a imagem das barricadas de pneus coloridos, para dar um toque de irreverência, e das faixas, pichações e grafites da Ocupação. A Ocupação foi o movimento mais importante, no meio estudantil, dos últimos vinte anos pelo menos. Nunca uma greve na USP, que hoje, como se costuma dizer, já faz parte do calendário escolar, repercutiu tanto como esta. A Ocupação era, ao contrário do que se insinuava, a própria greve: no momento em que a Ocupação findou, a greve também acabou. Durante o período em que a ameaça de uma ação da tropa de choque se fazia iminente, furgões com antenas que iam até o céu, da imprensa espreitavam, como abutres negros, dia e noite a Ocupação. Também não houve um único jornal que não noticiou diariamente a Ocupação. A Ocupação foi um momento ímpar que canalizou uma série de reivindicações que extrapolavam a esfera elitista da maior universidade do país. O que estava em jogo, não era apenas a revogação dos decretos e aí continuar tudo como estava, mas se vislumbrou a possibilidade de um questionamento que ia para todas as direções. Colocou-se em questão, por exemplo, o sucateamento do ensino público, fundamental e médio, já consolidado; o fim do vestibular; a exclusão dos proletários e dos negros da universidade pública e de qualidade; os conflitos no campo e na cidade; a falta de moradia; a violência generalizada; os efeitos da sociedade de classes; a Universidade Livre; e tantas outras coisas que se interligavam e que se confluíam e transformavam a Ocupação na ponta do iceberg das demandas sociais. De fato, andando pelas ruas, alguma pessoas que nunca tiveram a oportunidade de entrar numa faculdade perguntavam para mim por que a tropa de choque não despejou os estudantes. A resposta podia ser dada pelos próprios alunos da USP: “Você acha que a tropa de choque vai entrar aqui, cheio de gente da classe média, média alta e alta, cheio de filhos de figurões importantes, como juízes, políticos, etc.?” Esta era também uma das explicações para a baixa participação dos alunos moradores do CRUSP na Ocupação: “só tem filhinho de papai lá” – explicação esta, diga-se, falaciosa, pois a participação inexpressiva dos cruspianos se deve muito mais há uma estratégia de mudança do perfil dos moradores, cada vez menos engajados em assuntos políticos, empregada pela administração da Coseas. No entanto, a pergunta que se devia fazer era o por quê da tropa de choque desbaratar freqüentemente com truculência acampamentos de sem-terra, ocupações de sem-teto, manifestações de camelôs, etc. Isto porque as leis, como bem demonstras Kafka, são inacessíveis ao povo, os guardiões, um mais terrível que outro, guardam os seus portões. Talvez mesmo o termo “invasão” seja o mais explícito e correto: não concordamos com estas leis que são um instrumento de uma classe para punir e controlar as demais! Ou talvez devêssemos pensar em outro modelo e ainda manter o termo “ocupação”. Aliás, vide a resistência do Prestes Maia, a maior ocupação da América Latina, invunerável à tropa de choque.
Porém, um fato pode surpreender, numa das reuniões da Ocupação, quando se perguntou quantos alunos provinham de escolas públicas, a maioria levantou a mão…
Por outro lado, a Ocupação da REItoria, longe de ser perfeita, de alguma forma conseguiu aglutinar demandas que lhe eram alheias e se tornou universal, independentemente de sua vontade, como se mencionou acima. Seu poder simbólico e real foram assustares. O status quo tremeu: ora, no ano passado, o PCC; agora, os estudantes que invadiram a reitoria da maior universidade do país. Evidentemente, não se pode comparar estes dois “atores sociais”, a Ocupação caminhava para um sentido de transformação social, por si só, sem violência, com poesia; ao contrário daquele, que reafirma o sistema só que por um outro lado. De fato, a Ocupação caminhava para essa radicalidade. O que ela poderia, com seu exemplo, deflagrar pelo resto do país? Realmente, preocupante! Seu turbilhão de reivindicação superava interesses salariais, acordos espúrios, bagatelas do tipo 5%, 10% de alguma coisa, etc. Como recebia uma das faixas quem entrava pelo saguão da REItoria, fazendo memória ao Maio de 6811 e aos Situacionistas: “Sejamos realistas, façamos o impossível!”. O próprio professor Henrique Carneiro, do PSTU, narrou na Ocupação que Maio de 68 começou com reivindicações mínimas para, depois, as barricadas tomarem as ruas. Então por que os partidos e facções políticas fizeram de tudo para refrear esta possibilidade? Só mesmo a sua institucionalidade pode explicar tal fato: talvez jogo de poder ou apropriação e controle das abstrações políticas em si mesmas. Ou seja, mudar para não mudar nada.
Neste sentido, a Ocupação possibilitou mesmo a livre participação política de qualquer um, sem necessariamente estar ligado a um grupo partidário. Trouxe a oportunidade de todos se manifestarem em pé de igualdade. Socializou a participação política, dando luz as trevas da alienação política. Portanto, num certo momento, as pessoas lá não queriam delegar suas decisões e reduzir sua participação apenas ao ato de levantar os braços nas votações, relutavam em ser massa de manobra e aceitar tudo de cima para baixo. Aliás, como na Ocupação se insurgiu contra as manobras ou ao aparelhamento dos espaços de reunião. A Ocupação, quiçá, chegou muito próxima ao ideal da democracia direta!
Por isso, discordo totalmente da retórica vazia que era usada e abusada pelos partidos. Quando se dizia, por exemplo, que a Ocupação era meramente um símbolo e, sob tais conjunturas, eram necessários instrumentos mais eficientes de negociação, pergunto: desde quando um símbolo não é um instrumento, está aí a ideologia que não me deixa mentir. E por que a Ocupação não é um instrumento eficiente? A repercussão nos meios de comunicação e na sociedade jamais vista em uma greve da USP nos últimos anos talvez responda esta pergunta, com uma pequena ressalva, a Ocupação acabou roubando a cena. Mas se aceitássemos o argumento, um símbolo é uma representação, vazia e estática, distante da/ou forjando uma realidade, podendo ser usado para o bem ou para o mal. Todavia, nada indica que na realidade a Ocupação foi um símbolo, senão por força do discurso. Talvez o termo mais adequado seja exemplo ou modelo, assim como foi Maio de 68, e o seu significado, repleto de conteúdo, foi a sua história original que mobilizou estudantes e não-estudantes de todo o país. E, verdade seja dita, seu mote primordial está assentado ou inspirado no Segundo Congresso dos movimentos sem-terras: “Ocupar, produzir, resistir”. Quanto aos termos quase metafísicos “fluxo”, “refluxo”, “correlação de forças” etc., e frases repetidas a exaustão, de acordo com o movimento das marés, do tipo “é preciso analisar a correlação de forças e compreender que o movimento está em refluxo (ou em fluxo)”, perguntamos, que “forças” ou desde quando o movimento operário ou dos explorados não esteve algum dia em refluxo? Os trabalhadores sempre estiveram em desvantagem, suas conquistas demandaram muitas perdas, infinitas vezes maiores do que a dos dominantes. Basta lembrar que meses depois da Revolução de Outubro, em 1917, foram proibidas greves e reivindicações sociais como bem relataram em correspondências os camaradas anarquistas, perseguidos — e, não raro, torturados – pelo regime totalitário leninista. Talvez, diante de todo esse espetáculo, devêssemos lembrar o anarquista russo, Suvarin, do romance “Germinal” de Émile Zola: “Besteiras!” Assim, se os trabalhadores tivessem que esperar o “fluxo” ou a misteriosa “correlação de forças”, ficariam sentados esperando. Tal perspectiva vai mesmo contra a práxis marxista. Quanto aos argumentos que faziam entender que a convivência na Ocupação estava insuportável, que “as pessoas estão se matando lá dentro”, que tipo de socialistas são estes que não conseguem viver em paz e harmonia consigo mesmos, com seus irmãos de idéias? E é bom que se diga que esse argumento também foi usado por quem sequer passou uma única noite na Ocupação! A retórica variava então de acordo com as conveniências e interesses, se era oportuno dizer que só estudantes podiam participar do movimento, então defendia-se isto com unhas e dentes.
Vale lembrar que o objetivo que se coloca como finalidade do movimento são as “negociações”. Isto implica no mínimo numa coisa, a redução drástica das reivindicações mais gerais. Num outro sentido, significa reafirmar a política como um balcão de supermercado, isto é, arraigada na lógica capitalista da equivalência, na lógica da troca (de mercadorias). Quando pensamos na palavra “negócio”, o que vem primeiro à nossa mente? Um estabelecimento comercial ou empresarial; um empreendimento; uma compra e venda etc. E é exatamente este o sentido mais abrangente desta palavra. A política entra aí como sócio menor, e todas as artimanhas do comércio ou as transações capitalistas são referências estruturais do modelo político atual. O ideal é chegar ao meio termo sempre, isto é, fazer um bom acordo, um bom negócio. Vale lembrar também que alguns políticos fizeram da política um excelente negócio, um negociarrão! em suas negociatas de bastidores. Assim, é preciso repensar o modelo de se fazer política, quem sabe até propor a auto-gestão nos devidos termos. Exigir dos partidos uma radicalidade crescente, é esperar um rompimento deles com a própria institucionalidade, algo mesmo que poderia por em xeque as suas existências enquanto partidos.
Deste modo, quando penso na mesa das assembléias formadas apenas por independentes e das críticas que sofreu por sua inexperiência, penso que neste jogo a inexperiência e a ingenuidade talvez sejam mesmo um grande valor moral.
A Ocupação não foi impassível de críticas. Muitos alegaram, por exemplo, que a Ocupação foi muito bem comportada, nos moldes do “polilticamente correto”, e não teve a ousadia dos anos 60, 70 e 80. Outros fizeram críticas pertinazes com relação ao sistema de entrada que exigia a identificação através da carteirinha tal qual a portaria 1 da cidade universitária. Enfim, tampouco houve a tentativa de se pensar um projeto consistente de transformação social. Todavia, existia uma pontencialidade que parecia rumar para a radicalização, e, além disso, foi uma grande experiência, um aprendizado, como costumava se dizer por lá. Aquela gente toda tentando dialogar, tentando fazer valer suas posições, participando de um processo histórico, foi algo excepcional. Nunca mais vou esquecer de algumas pessoas, de alguns rostos, de alguns olhares. Afinal, tomamos a reitoria, tomamos a praça do relógio, tomamos o relógio, tomamos o tempo! Quem sabe uma alusão ao refrão de Vandré, “quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Foi o filósofo Heidegger quem deu a maior atenção à palavra ocupar/ocupação que, se bem entendi, designava fazer-se presente ou o apropriar-se do mundo pelo ser-no-mundo. Com a Ocupação aprendi uma lição profunda de tão simples, a vida acontece agora, e o futuro está presente nesse agora, de modo que a utopia não é uma espacialidade ou temporalidade distante num horizonte à nossa frente mas, o amanhã que já é hoje. Ainda posso ouvir: Ocupa! Ocupa! Ocupa! Ocupa!