Brinquedos de armar

Blog da Ocupação — 25-jul-2007
Por Mafê

Daí não adianta. A partir da Folha do dia 24/06 a história viveu: fomos uma luta que não superava o status quo, uma subversão pela ordem inovada na forma. Assim sentenciou a entrevista de três grandes intelectuais da esquerda ao periódico1 — texto que foi pensado para ser, de certa forma, uma análise conclusiva da ocupação. Desde então, tal discurso encontrou eco nas avaliações de boa parte da comunidade acadêmica — e é por isso que escolho começar por ele, mas justamente para apontar perspectivas que lhe fogem, e que tornam a questão da análise da ocupação tanto mais desafiadora: por exemplo, que nós já sabíamos. Fomos sabendo durante o processo. E começamos a saber concretamente no dia 08 de maio, quando não aceitamos a proposta da reitoria, bastante próxima daquela que aceitaríamos 45 dias depois. Então me pergunte, que contradição é essa? Afinal, sabíamos ou não que as pautas eram muito menores do que nós mesmos?

O próprio Paulo2 também nos tinha dito e, ao contrário do que lhe pareceu, nós concordamos. E isso se mostra numa das célebres frases que se disseminaram pela ocupação: “a pauta ficou pequena” (ao lado da tão aclamada “Tá em choque? Desocupa!”, em homenagem à nossa famigerada 'polícia política' — e deixo em aberto o sentido desta última classificação. Voltemos). Tanto é que a pauta crescia e mudava desordenadamente até um ponto em que sequer sabíamos direito qual era sua versão “oficial”: a pauta não foi central para o movimento, era antes uma forma justificativa tradicional característica da grande maioria dos movimentos políticos atuais, nesta época em que é tão difícil suster o peso das ideologias, das utopias. E mesmo a luta contra os decretos, estopim de tudo, amadureceu-se como luta contra uma lógica política de centralização do poder, que compartilhara da mesma dificuldade pela qual passaram — e ainda passam — os professores em compreender os limites dos decretos nesta reforma do Estado empreendida pelo executivo no governo Serra. É disso que se trata. Frente à pecha de “subversão pela ordem”, não ficamos aborrecidos [tal qual crianças que descobrem defeitos no brinquedo novo] ficamos sim meio impotentes frente à necessidade de ter uma resposta. Tão perto, tão longe, caro Paulo.

De fato, a questão da radicalidade da posição dos jovens frente nosso tempo permanece em aberto. Não conseguimos transpor instantaneamente para nosso discurso aquilo que fomos constatando ao longo do processo, mesmo porque estávamos longe de uma homogeneidade nas percepções: há um tempo descompassado que se liga muito à falta de experiências políticas concretas vividas por esta geração, mas quero crer que só a ocupação terminou. Houve um marco nas experiências políticas de boa parte de nós, e parte dela foi um choque direto com as próprias estruturas do movimento estudantil. Talvez por isso as assembléias tenham perdido a centralidade e esvaziado com o tempo. E aqueles que não viveram o cotidiano da ocupação também não encontraram inovações nos espaços por excelência desta estrutura que teme por sua própria conservação. E sobre isso acredito ser importante resgatar algo do que foi a história do movimento estudantil. Não para manter 1968 como paradigma mitológico, mas para compreender melhor o que é esse encontro chamado movimento estudantil. Encontro porque me parece ter sido muito mais um lugar de formação e troca de perspectivas políticas e projetos do que um movimento em torno de reivindicações — o qual se unia, claro, na oposição ao capitalismo, ao regime ditatorial, ao status quo, com todas as contradições que um tal desafio possa trazer. Mas nosso presente traz um agravante muito bem apontado pelos nossos interlocutores: “A ocupação da reitoria da USP mostra de forma escancarada que a política tradicional não tem mais capacidade de processar os conflitos sociais”. E aqui se desvela um outro ponto, sobre o qual também apontarei apenas o sintoma: tanto os partidos políticos e agremiações de esquerda como os movimentos sociais, ainda embrenhados quase que absolutamente com os primeiros, não se mostram hoje como perspectivas inovadoras e agregadoras desta juventude, na qual me incluo, cuja certeza só está numa negação ainda vazia. Foi nesse sentido que entendi a crítica: “No conteúdo, não há nenhuma alternativa política substantiva. Na forma, é uma ação política inédita, que tende a se multiplicar, como fórmula, independentemente do conteúdo. O contágio então vem da tecnologia política, do modo de fazer. O conteúdo está na forma”. E creio que este seja um dos pontos nevrálgicos a partir do qual precisamos olhar e experienciar a ocupação e as novas perspectivas para o movimento estudantil.

O que fica desse pedaço de movimento se inscrevendo na memória é essa espécie de sintoma ainda característico de nossa época, uma latente falta de perspectiva sobre para onde canalizar a ousadia. Numa época em que norma e transgressão estão previstas – no nosso caso previstas desde a própria estrutura do movimento estudantil, que se enreda em si próprio fazendo do seu agir dito legítimo sempre o mais próximo possível da normalidade institucional, como não poderia deixar de ser, já que seu discurso se estrutura em torno do respeito a tradições, e mesmo estatutos e normas, da conservação desse corpo-fátuo. Mas é fato que a pouca ousadia no discurso também se deu no próprio agir criativo de todos, mesmo dos menos ‘formatados’, aos quais também só aos poucos foi se achegando a constatação de que a pauta era bem menor do que podíamos ser.

Inovamos na forma, na subversão das mídias alternativas. Entretanto, se parte do conteúdo era a própria forma, é preciso reconhecer o movimento, o processo, que não termina 50 dias depois e que, na verdade, é difícil precisar onde acabará. Consciências em formação, política, intelectual, encontros de desmedida riqueza e uma constatação ainda tênue, porém avassaladora, de que atacar problemas pontuais vai nos emaranhar em tarefas até o limite de nossas forças, de que a universidade não tem projeto de nação e não vai salvar ninguém, no máximo vai salvaguardar seu próprio peso de elefante branco, que se mantém mais pelo imobilismo do que pela construção de um projeto comum.

Mas, por mais que pareçam, tais constatações não são um mero mar de pessimismos frios. Ao contrário talvez sejam desmistificações necessárias para questionamentos que brotam do acalentar do sangue: após a efetivação do projeto liberal de formação de uma elite política nacional, fundador da USP, o que resta? A universidade de massas? É possível um projeto de universidade que se contraponha à dominação neoliberal? O que afinal produzimos? (Patentes? Discursos? Legitimidade? Poder?). É ainda possível se opor à privatização branca das fundações? A universidade transformou-se num mero guarda-chuva operacional para se chegar aos fundos da CAPES, CNPq e FAPESP? Até onde se está disposto a criticar o modus produtivista imposto pelas organizações de fomento? A figura do intelectual militante é uma abstração mítica? Ou existe vida inteligente fora do privatismo dos parcos grupos de estudo em que se encerrou boa parte dos intelectuais de esquerda? Seria essa a melhor solução? Que consciências estão ajudando a formar a partir de sua própria postura? Por muito disso, consigo entender perfeitamente que os professores de esquerda não disputem as migalhas dos espaços institucionais na USP, só não compreendo porque muitos deles não disputam as salas de aula. É sintomático quando presenciamos processos como este e boa parte de nossos professores e alunos sequer se predispõe a discutir sobre os acontecimentos. Como dissipar tanta miséria no meio estudantil? Mentes técnicas, corpos produtivos… Mas por sorte não há como destruir toda consciência crítica, nem entre nossos professores, nem entre nós, alunos.

De fato, a partir deste contexto, dizer que a autonomia está assegurada, e mesmo que existia, parece uma apropriação de quinta categoria do discurso liberal (um retorno às raízes? risos); e lutar pela estatuinte como um fim em si nos manterá “dentro da normalidade de uma vida institucional”. Mas não se pode negar que a universidade ainda possibilita uma formação crítica de forte oposição ao sistema, por mais que a instituição não se proponha a superá-lo — o lecionar tem uma participação importante nisso. Questionar a estrutura de poder dentro da universidade carrega um pouco desta contradição, de um fazer que leva ao questionamento das estruturas político-sociais no interior de uma instituição que se nega a pensar a si mesma. Além do fato bastante visível de que as decisões tomadas por esse ínfimo número de professores, em sua massiva maioria conservadores e de fortes vínculos com o pensamento neoliberal — atolados até o pescoço com os projetos de terceirização, enxugamento dos recursos públicos, privatização via fundações, forjando mecanismos sempre afins dos campos das pesquisas que giram em torno do capital — determina muito do que é a experiência universitária e, portanto, tem impacto naquela formação. E, principalmente, não há como negar que a pesquisa realizada nas universidades, e especialmente na USP, tem gerado não só nomes diretos de nossa política nacional, como tem o poder de legitimar pensamentos e pautar questões, atuando diretamente na nossa realidade, ajudando a forjar muito daquilo que é o status quo. Daí fazer sentido questionar a USP, mas concordo: não só em sua estrutura de poder, mas também ela, nem que seja para aprofundar sua deslegitimação.

Romanceadamente ou não, se não está em questão uma nova USP (para além do desvelamento desta velha), é preciso reconhecer as escarificações, as novas matizes provocadas porta derrubada afora. Espaços em aberto. “Sair da reitoria para ocupar a USP”… Pode ter sido mera retórica esperançosa. Pode ter sido um marco na formação de todo um grupo que provavelmente se dissolverá entre grupos políticos, movimentos sociais ou outras formações e as ainda imponentes plaquetas nas portas nos corredores da Universidade. Entramos. Mas entrar, como não poderia deixar de ser, é só começo, que deve ir para além de si mesmo. Pra onde? Para

Maria Fernanda
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