Ocupação na USP: a democracia aqui e agora

CMI, 15/06/2007 às 10:05
Por Bruno Cava

Enquanto a grande imprensa e o governo estadual administram os medos, dizendo que a democratização imediata é inviável; os insurgentes fazem da própria alegria um ato de força política, mostrando que a democracia é sim possível - aqui e agora.

OCUPAÇÃO NA USP: A DEMOCRACIA É POSSÍVEL

"Esta ocupação foi uma fórmula para estes jovens darem uma aula de democracia ao poder instituído na universidade" — prof. Olgária Matos. (FFLCH / USP)

A ocupação da reitoria da USP pelo movimento estudantil paulista - conjugado com setores dos funcionários e do corpo docente — é a maior mobilização democrática de 2007. Ao contrário do que repetem o governo estadual e a grande imprensa, trata-se de um ato político constitucional, legítimo e afinado com os princípios republicanos que norteiam a democracia.

Em três de maio, um grupo heterogêneo e sem comando centralizado, meio que desastradamente, surpreendendo-se com a própria força, assumiu a autogestão do espaço público, a fim de protestar pela situação do ensino superior brasileiro. A ousadia em resistir no coração da maior universidade do país vem inspirando outros movimentos semelhantes em instituições estaduais e federais (pelo menos em oito campi). Quem achava que a juventude brasileira estava afônica assustou-se com a potência e a determinação dos resistentes.

Ocupar, lutar, produzir — este o fio condutor da sublevação na USP. Mantendo intensa agenda cultural e política, os ocupantes organizam e produzem blogs, jornais, charges, vídeos digitais (muitos no Youtube), programas de rádio (na Rádioocupa) e TV (na TvLivRe!), seminários, cartazes, festas, intervenções estéticas e propostas políticas. Todos os dias, o blog oficial (http://ocupacaousp.noblogs.org) oferece a programação. No dia 12 de junho, por exemplo, estavam agendadas a exibição do média-metragem "Ajuste", uma mesa redonda com o filósofo Paulo Arantes e uma palestra de história com o professor de história Ulpiano Bezerra.

Não é que a ocupação tenha "privatizado" um espaço público. Na verdade, ela ocupou o espaço estatal para redimensioná-lo como público, isto é, como espaço comum. Da criatividade, da descontração, da música, da energia vital, do desejo de mudança? os jovens fazem de tudo isso um ato político. Afirma-se uma forma de vida que alegra, instiga, seduz e é, por si mesma, também uma produção.

Irremediavelmente perseguida pela grande imprensa - em sua maioria comprometida com a criminalização de movimentos sociais (como o MST, os Sem-Teto, outras ocupações etc) e com a linha política do governo de São Paulo (PSDB) — a ocupação resolveu veicular as suas próprias notícias e opiniões, contando com a velocidade e o alcance propiciados pela Internet. De acordo com Paulo Henrique Amorim, "a ocupação da USP é o primeiro movimento político brasileiro movido a web", demonstrando uma diversidade e uma abertura que não podem ser encontrados na mídia monopolista.

O movimento conta com o apoio declarado do sindicato dos funcionários da USP (Sintusp) e de 524 professores da própria universidade, dentre eles Marilena Chauí, Antonio Candido e Leda Paulani.

Talvez um dos maiores pontos positivos da ocupação é a independência com que os estudantes promovem a ação direta. Diferentemente do que vaticina a desinformação dominante, não houve sequer um planejamento para a ação. Do mesmo modo que os protestos de maio de 1968 na França, cuja fagulha aconteceu em Vincennes, durante uma manifestação pró-liberdade sexual, a sublevação na USP explodiu espontaneamente, angariou apoios e obteve unidade somente na produção do dia-a-dia.

Os desencontros da elaboração da pauta, bem como o abandono e a deserção por parte da "esquerda desvairada", na feliz expressão de Darcy Ribeiro, denotam a ausência de aparelhamento, por mais que, uma vez evidente a potência do movimento, os mesmos partidos de sempre, oportunistas como sempre, tentassem tomar conta de uma dinâmica que não promoveram, de modo a obter migalhas eleitorais e midiáticas.

Por isso que, dentre os inimigos da ocupação na USP, não estão apenas o governador Serra e sua tropa de choque a rondar a universidade. O governador, ele próprio ex-líder estudantil, pode ser arrogante, mas não é burro. Uma invasão truculenta do campus não é uma passagem tão desbotada na memória, de modo que a associação com aquelas páginas infelizes da nossa história restaria inevitável. Ademais, baixar a pancada em precários dos Sem-Teto é bem diferente do que em filhos da classe-média.

É possível que o maior inimigo da ocupação? essencialmente independente e apartidária - sejam os aparelhamentos partidários e sindicais. Uma coisa é apoio, outra apropriação. A chegada depois e de cima de projetos de poder causa a divisão interna, o desvio da agenda e, em última instância, a despotencialização/despolitização da ocupação.

O fato é que dos dezoito itens da pauta consolidada, salta aos olhos o quinze: "15. Lutas por ações afirmativas - mudança radical na concepção de Inclusp para garantir o acesso real de negros e pobres à universidade." Este o vetor democrático? autenticamente revolucionário ? da ação direta, pois voltado à inclusão dos 90% de jovens sem-universidade da faixa de 18 a 24 anos. Taxa muito aquém de índices europeus ou norte-americanos, mas também do ensino sul-americano (na Argentina, mais de 30% dos jovens estão no ensino superior? o triplo…).

O referido ponto obviamente não foi formulado nem conta com o real apoio dos sindicatos dos professores, como a ANDES ou a ADUSP, cuja luta tende a se restringir não ao eixo de democratização, mas a mais salários e mais verbas estatais. Interesses corporativos desfocados do aumento inadiável das vagas, contra a inclusão racial, contra a indispensável reforma da educação superior (nas instituições estatais e não-estatais) e contra políticas universalizantes do acesso, tais como o PROUNI e o REUNI.

Com efeito, o referido ponto tem sido "abafado" nas assembléias e na divulgação, o que exige a atenção dos que genuinamente lutam também com a multidão de excluídos. Apesar do ranço da direita socialista, o blog oficial da ocupação ressaltou recentemente a importância capital da democratização do acesso: "A problema não é só da educação pública superior, a crise é social! Mais verbas para a educação como um todo! Democratização do acesso ao ensino já!".

O desenrolar da ocupação deixa também o ensinamento de como o direito pode ser repressivo quando encarado unicamente como técnica. No dia 15 de maio, os advogados do governo estadual ajuizaram a ação possessória. À tardinha, no mesmo dia, o Judiciário mostrou como pode ser célere ao conceder a liminar de "reintegração imediata da posse". Eis aí a participação "democrática" de um Judiciário que de vez em quando se proclama ativista.

A medida liminar legitimou a violência contra os estudantes por parte da tropa de choque, que só não foi exercida porque o governador sabe dos riscos políticos de espancar o alunado. Para Olgária Matos, professora de filosofia da USP, a eventual invasão pelas autoridades do governo "é mais do que autoritarismo". Quando sob ótica tecnicista, o direito busca legitimar e fortalecer a contenção social das pressões democráticas, que um país desigual às vísceras como o Brasil produz diuturnamente.

É de se elogiar a coragem e a lucidez de um dos juristas comprometidos com a democracia no Brasil. Dalmo de Abreu Dallari? além de visitar e ver com os próprios olhos a dinâmica da ocupação na USP? levantou, afinal, uma discussão que também deve desenvolver-se no mundo jurídico.

Afinal, se vivemos em um estado democrático de direito, por que mobilizações democráticas regularmente findam deslegitimadas e criminalizadas pelo direito? Pois a democracia, ao contrário de regimes autoritários e controlados, deve ser o espaço de participação popular, conflito, divergência e expressão livre.

Sem uma sociedade politizada, não há democracia. Como sustenta o filósofo italiano Antônio Negri: a "liberdade não é uma batata". De fato, a liberdade não é uma dádiva da natureza. Ela precisa ser conquistada, trabalhada, desenvolvida. Maquiavel, já no século XVI, dizia que a única garantia dos cidadãos contra a dominação do poder constituído é uma constante e inabalável virtude cívica na luta democrática. O inspirado Thomas Jefferson, logo após a revolução americana, escreveu que a democracia "precisa de uma rebeliãozinha de vez em quando", para nos recordarmos de quão árdua foi a produção histórica e material dos direitos de hoje.

Atualmente, boa parte do esforço do direito público é dirigido à judicialização da política. Uma judicialização que procura, por meios cada vez mais sofisticados, neutralizar o político. Atiram-se as fichas todas na decisão judicial: como se as dinâmicas sociais e de contestação democrática pudessem ser resolvidas por meio da racionalização da canetada. Condicionar o discurso jurídico, mediante teorias argumentativas da decisão, faz parte do sempiterno programa racionalista. Que é exaurir os conflitos sociais, obtendo a conciliação definitiva das diferenças em um consenso derradeiro ? porém sempre e sempre desigual, estático e controlado.

É preciso recordar que a construção do estado de direito em que vivemos, com todas as suas vicissitudes e deficiências, só pôde ser iniciada graças às lutas democráticas do final dos anos 70 e dos anos 80. Longe de ser uma década perdida, foi um tempo de mobilização social e abertura constituinte, das bem-sucedidas greves sindicais do ABCD à imensa mobilização popular das Diretas Já. Os anos 80 também viram o ressurgimento de movimentos sociais violentamente silenciados no período anterior.

Pretende-se que acreditemos que, em 1988, a Constituição encerrou o ciclo constituinte de democratização. Daí por diante, seria caso somente de desdobrar e efetivar a ordem jurídica outrora proclamada. Nas escassas ocasiões em que aborda o direito o mais originário: ? anterior, produtor e garantidor dos demais direitos, inclusive do direito à vida ? o direito à resistência, o constitucionalismo restringe-se a seu aspecto negativo, esquecendo-se do positivo: a produção de novos direitos. O direito à resistência é também um direito positivo, aberto ao poder constituinte.

Mas o poder constituinte é incontrolável e o processo democrático inexoravelmente expansivo. Eles não se amoldam à vida cerceada e estática do poder constituído, por mais que o governador e as varas cíveis de São Paulo baixem seus decretos. A história da liberdade é a história da potência das multidões que não têm medo de resistir e criar e afirmar e cantar. Na sua afirmação juvenil, os estudantes acampados resistem produzindo o seu modo de vida. A ocupação democrática já é vitoriosa. Enquanto a grande imprensa e o governo estadual administram os medos, dizendo que a democratização imediata é inviável, destarte não oferecendo alternativa à supressão da liberdade; os insurgentes fazem da própria alegria um ato de força política, mostrando que a democracia é sim possível — aqui e agora.

Bruno Cava, 28, apartidário, é estudante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Direito) e militante da Rede Universidade Nômade.

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