REUNI: o cavalo de Tróia do MEC

ADUnB, 06 de setembro de 2007
Por Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro

Episódio bem conhecido na literatura, em famosa passagem da Ilíada de Homero, a conquista de Tróia, sitiada pelos gregos, culminou com a vitória destes, após um hábil estratagema. Um grande cavalo de madeira, colocado às portas de Tróia, abrigava muitos soldados gregos em seu interior, escondidos de seus inimigos. Inicialmente visto como uma oferta, como sinal de rendição dos seus adversários, fora introduzido na cidade, pelas próprias mãos dos troianos. À noite, o “presente” ganha vida; os soldados escondidos abrem os portões e permitem, assim, a completa invasão de Tróia, que sucumbe ante o poderio dos exércitos inimigos. Nada mais a fazer; a rendição tornara-se inevitável.

Se o descrito acima foi real ou não, há muitas controvérsias. Contudo, uma leitura dos acontecimentos recentes, a partir da publicação do chamado REUNI — Programa para a “Reestruturação e Expansão das Universidades Federais”, parece reeditar o episódio narrado por Homero. O presente deixado às portas das universidades públicas são os “fartos recursos” disponibilizados para as mesmas, que, numa situação de grande penúria e ameaças — na linha da cidade sitiada pelos gregos, para ficarmos nessa paródia — são tentadas a aceitar. Afinal, teria o MEC se rendido aos insistentes apelos das Insitutições Federais de Ensino Superior? Teria chegado, enfim, o ocaso das longas noites dos “pires nas mãos”, em que as universidades públicas, cansadas de tanto esmolar do Governo Federal, passariam a viver num novo vergel?

Qual nada. É preciso desvelar, antes que seja tarde e a rendição total. O momento é grave. E o engodo preciso ser compreendido, em toda a sua dimensão.

Para isso, é preciso ter muito claro o que vem junto com tão alardeado “presente”, que tem motivado, inclusive, pessoas sérias, em nosso meio acadêmico. Afinal, como deixar de concorrer a tão expressivos recursos? Perguntam-se muitos de nós. Como não aceitar a expansão de vagas? Como não melhorar nossos currículos? E assim por diante. É porque tudo isso é muito auspicioso, que somos levados a acolher o “presente”. Muito compreensível, por essa linha de abordagem, alguns apoios concedidos a tal proposta do MEC.

No entanto, há muito mais em jogo. A questão é: o que vem junto com tudo isso? O que se esconde nas entranhas de proposta aparentemente tão oportuna e alvissareira? Que inimigos estariam ali infiltrados?

Para responder a tais questões, começo com outra. Prezado colega, você faria qualquer coisa por dinheiro? Certamente que não, muitos de nós diríamos. Embora, cá entre nós, outros tantos de nós o fariam, e já o fazem. Cito: usar de uma triangulação, digamos do CNPJ de uma unidade da instituição, mediante a atuação desta, para auferir benefício pessoal, ou para vender consultoria, em detrimento do tempo que deve ser dedicado ao ensino e à pesquisa, sem o conhecimento do centro, departamento, faculdade ou instituto, onde o docente está lotado. Falo em tese, mas muitos de nós sabemos que isso é prática corrente. E não há novidade nisso, pois há várias denúncias públicas a esse respeito. Inclusive o questionamento, em razão desses fatos, do importante instituto da “dedicação exclusiva”. Então: há muito dinheiro envolvido, hoje, em torno, e circulando nas universidades públicas brasileiras. Mas eles não confluem para os destinos corretos, não geram melhoria da qualidade do ensino, tampouco das condições de trabalho. E nos perdemos, institucionalmente, em intensas competições internas e externas, criando “ilhas de excelência” (muitas vezes restritas a um ou outro docente, individualmente), ao lado de extensos campos de miséria e abandono. Realidades díspares, sob os olhares, no mínimo, omissos de quem nos dirigem. Afinal, bem vinda a capacidade de captar recursos, diriam muitos. Mas, para não perder o foco, acredito que muitos de nós estão profundamente incomodados com esse estado geral de anomia, um descontrole generalizado, escondido sob o disfarce do chamado “marketing”. Tudo isso, em clara ameaça à qualidade da vida acadêmica, do ensino, da pesquisa e da extensão. Os benefícios apregoados em tais práticas são no mínimo residuais para o futuro de nossas universidades públicas.

E por que não se abre tal discussão? Por que a reitoria da UnB não coloca esse tema (da captação e distribuição interna de recursos) — tão importante, para o bem ou para o mal — em nossas pautas dos conselhos superiores, ao invés de apresentar, pura e simplesmente, inúmeras planilhas, que poucos as entendem?

A julgar pelo que temos visto, a adoção ao REUNI (na velocidade em que tem se dado na UnB) sem o devido aprofundamento desses assuntos, é, no mínimo, semelhante a trazer o cavalo de Tróia para dentro dos muros da cidade sitiada.

O inimigo está ali, escondido, afoito por tomar conta do que ainda resta de positivo em nossas instituições: a nossa inegociável AUTONOMIA. É essa a ameaça velada, escondida no REUNI: a perda de nossa autonomia, garantida constitucionalmente, legado de longas batalhas.

Perderemos autonomia, em troca de dinheiro. Perderemos autonomia, na medida em que estaremos sucumbindo a uma política de expansão de vagas, SEM O DEVIDO CONHECIMENTO DOS IMPACTOS QUE MUDANÇAS TÃO PROFUNDAS TRARIAM PARA O NOSSO COTIDIANO ACADÊMICO (em termos, inclusive, de jornadas de trabalho). Na medida em que não discutimos e garantimos bem estes aspectos, centrais, como a qualidade da formação de nossos futuros profissionais, em nome de uma necessária composição de recursos financeiros, estamos abrindo mão de nossa autonomia. E aí, prezados colegas, quando isso já estiver comprometido, nada mais poderemos fazer, a não ser cumprir ordens e seguir, como vassalos, os novos suseranos. A rendição teria se completado.

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