Vídeo da Poli expõe fosso ideológico na USP

07/08/2006 14:18h

por ALCEU LUÍS CASTILHO

Um vídeo amador e aparentemente despretensioso produzido por estudantes da Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) foi visto desde o dia 26 de junho por mais de 20 mil vezes no site YouTube. Não foi à toa, e não somente pelo humor discutível. ”Sintusp Wars – A Greve do Veto Maldito” expõe uma fissura entre tribos universitárias que, pelo andar da carruagem, só tende a crescer. A posição de alguns dos futuros engenheiros presentes no vídeo pode e deve ser criticada. A qualidade do vídeo, também. Mas ele preenche uma lacuna ao mostrar, pela primeira vez no século 21, a gravidade do embate ideológico na maior universidade do País.

Os autores do vídeo, os politécnicos José Oswaldo de Oliveira Neto (roteirista) e César Augusto Faustino Junior, representam estudantes descontentes com a lógica das greves e das manifestações do Sindicato dos Trabalhadores da USP. Eles se inspiram na abertura de Guerra nas Estrelas para iniciar o documentário de 17 minutos. É preciso ser justo com o vídeo: apesar de despretensioso e parcial, é extremamente ilustrativo em relação a um episódio-chave (suposta agressão física a uma líder do Sintusp por um professor da Poli) e ao conflito latente entre o que se pode quase definir como facções – seja de estudantes ou de funcionários.

Os gritos de Neli, a titular do microfone do Sintusp, incomodam. O caminhão do sindicato passa pela Poli e provoca reações dos estudantes. Neto e Junior pegam a câmera e registram algumas cenas. Que não abonam nenhum dos lados. O barulho do caminhão dos funcionários e a performance estridente de Neli tornaram-se mesmo um clássico entre quem freqüenta a Cidade Universitária. É o que motiva a leitura da greve pelos diretores como um cenário de “invasão”, no caso agressão ao direito de os estudantes assistirem aulas de professores que não aderiram ao movimento. Incomodados, eles saem à rua e protestam. Cercam o caminhão e cercam Neli.

Um deles dispara impropérios contra a funcionária: “Velha maluca, vai se foder, sua filha da puta”. Neli, embora descrita sempre como aquela que grita, aparece somente assustada, em silêncio. Seus colegas aparecem exaltados, enfrentando um grupo de estudantes. Maniqueísta, o vídeo em nenhum momento relativiza as atitudes dos dois lados – mas por isso mesmo expõe, sem perceber, junto com críticas em boa parte justas ao anacronismo dos sindicalistas, também as vísceras da “direita da USP”.

O preconceito dos autores é evidente. Por um lado, contra “a FFLCH”, descrita como uma entidade monolítica, representativa do atraso (da mesma forma que a Poli é descrita por muita gente do outro lado…), onde as pessoas supostamente participariam de greves para jogar futebol. Por outro, contra os sindicalistas. Em vez de se aterem apenas aos excessos dos ativistas, Junior e Neto, que gravam parte das cenas em seus carros bem equipados, os demonizam e os tratam com desrespeito – seja em relação à linguagem (de que não teve chances de cursar o terceiro grau), seja contra as próprias imagens dos funcionários (“você quer que ESTE seja o próximo reitor da USP?”, diz o locutor, mostrando um sindicalista gordo e bigodudo).

Os politécnicos não visam fazer uma crítica isenta. Mas a hipótese contrária, a de estudantes, digamos, da FFLCH, fazendo um vídeo sobre o mesmo tema, talvez não seja tão animadora. Possivelmente alguns dos ranços esquerdistas detectados (em visão classista, despolitizada, rasa) pelos engenheiros motivassem um contra-vídeo rançoso, partidarizado, sem nuances psicológicas ou mesmo sociológicas em relação aos protagonistas. Possivelmente, talvez, quiçá, todavia – porque esse vídeo não foi feito. Nem tampouco um vídeo feito por estudantes da ECA, que em tese (apesar da maior proximidade ideológica com a FFLCH) poderiam, pela formação profissional, levar um olhar mais isento e rico sobre o tema.

Ou seja: a primeira vantagem de “Sintusp Wars” é ter sido produzido – e divulgado, boca-a-boca, nos corredores da USP,.e post-a post no Orkut. O maior conflito da história da Universidade de São Paulo, na Rua Maria Antônia em outubro de 1968, foi pouco registrado, pela própria ausência de aparato tecnológico na época – e pela falta de democracia. As grandes imagens do conflito entre as facções de esquerda, baseadas na USP, e as de direita, sediadas no Mackenzie (com direito à tropa do Comando de Caça aos Comunistas) estão em fotos – aquelas de “brigas de rua”, as pessoas armadas nos tetos do Mackenzie, as do secundarista José Guimarães baleado, ensangüentado, José Dirceu exibindo depois sua camisa nos protestos pela cidade de São Paulo.

Não, os conflitos entre politécnicos e sindicalistas, ou estudantes de engenharia e da FFLCH (a Faculdade de Filosofia da USP, reduto primeiro da esquerda), não chegaram ainda ao ponto da “guerra da Maria Antônia” – que, por sinal, levou à saída da universidade efervescente do centro para a entediante várzea do Rio Pinheiros, no Butantã. Estamos numa democracia, e não há a carga externa de influência logística sobre os protagonistas, como foi com o CCC e os partidos/facções revolucionários em 1968. Mas talvez até por isso o vídeo atual seja representativo: mostra que o conflito ideológico vem de baixo, percorre questões pontuais (a realização ou não de uma aula de Álgebra Linear na Poli) ou estruturais (o caminhão do sindicato aponta no vídeo o pessoal da Poli como “aquele que está contra a educação no Brasil”) e vai para não se sabe onde.

Nota da redação da Agência Repórter Social: o editor-executivo Alceu Luís Castilho cursou, entre 1990 e 1994, Jornalismo na ECA-USP - a poucos metros do Sintusp e no meio do caminho entre a Poli e a FFLCH.

[fonte: Agência Repórter Social]


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